Em meio as nossas aflições nativas, um artigo publicado no The New York Times pelo colunista David Brooks, em fevereiro, passou quase despercebido. “I miss Barack Obama” (“Por que terei saudades de Obama“, na versão publicada pela Folha de S. Paulo) elenca cinco virtudes do presidente dos Estados Unidos (EUA).
Manifestamente conservador, Brooks faz uma ressalva logo no começo da coluna. Afirma discordar de muitas das decisões de Obama. Em seguida, ao comparar o atual mandatário com seus eventuais sucessores, revela por que tem saudades do presidente que completará seu derradeiro mandato em janeiro de 2017.
Antes de enunciar os atributos, observa que estes deveriam ser comuns em mandatários, mas sumiram ou tornaram-se escassos. Brooks lista, então, cinco traços de caráter que distinguem Obama dos atuais candidatos à Casa Branca: integridade, noção essencial de humanidade, discernimento no processo decisório, elegância mesmo sob pressão e otimismo resiliente.
Não se trata de um elogio qualquer, em que pese escrito por um conservador soft. Chama atenção, porém, o que não está escrito – a negritude do primeiro presidente afrodescendente norte-americano.
Sim, Barack Obama é negro. Mas, embora tenha provocado muitos debates, não foi este o destaque de sua gestão. Brooks, por exemplo, não menciona o aspecto em seu artigo.
Após oito anos, salvo um cataclismo, ele não será nem o melhor nem o pior presidente dos EUA. Para muitos, terá sido um bom presidente da nação mais poderosa do mundo.
Em seu período, valores como o nacionalismo permaneceram em alta. A hegemonia econômica e financeira foi defendida como princípio inarredável. Também o caráter intervencionista do Tio Sam não foi alterado. A liberdade de imprensa e de expressão permaneceram basilares.
Democrata, priorizou temas progressistas – como o acordo climático, o controle da venda de armas, os direitos LGBT, a redução dos arsenais atômicos – com a relevância que estes temas requerem no século XXI. No relato de Brooks, soube enfrentar a hoje inescapável controvérsia dos muçulmanos, lembrando, ao visitar uma mesquita em Baltimore (EUA), que eles são americanos.
Nos conflitos fatais entre negros e polícia branca, Obama interveio como interviria um membro do Partido Democrata. Defendeu o direito dos cidadãos independentemente da cor da pele. Mas também defendeu a ordem.
Ou seja, no essencial, Obama não foi muito diferente da média dos presidentes pós-Guerra Fria. “Eu não fiz nada de muito diferente“, gracejou. Ser afrodescendente não foi decisivo em sua gestão. Deliberadamente, não fez disso símbolo de sua administração.
Pregação silenciosa
Ao não elevar o combate ao racismo a tema de destaque em sua agenda, abriu-se a críticas – se fizesse o oposto também seria criticado. Seus compatriotas acusaram-no de não ser negro o suficiente, já que não seria descendente de escravos (pesquisa genealógica apontou possibilidade oposta) e não conviveu em comunidades negras.
Por vezes reagiu com ironia, ao se definir como “vira-lata“. Noutras, com realismo. Numa entrevista à CBS (“60 minutes“), foi questionado sobre quando decidiu ser negro. “Na verdade, não foi uma decisão. Na nossa sociedade, se você se parece com um afro-americano, você será tratado como afro-americano”, respondeu.
Aos amigos e assessores confidenciou que pretendia mudar os estereótipos e a percepção sobre os negros nos EUA. Para tanto precisava falar com todos, não com plateias segregadas. Se dialogasse somente para negros, os brancos não ouviriam. E vice-versa. Diante do debate sobre quem é realmente negro, parece ter escolhido o caminho menos óbvio.
Assim, seu maior legado talvez não seja a obra visível – o “Obamacare”, a reaproximação com Cuba, a reabilitação econômica dos EUA, o acordo climático ou a histórica visita à Hiroshima. Sua herança, hoje menos evidente, será a afirmação da igualdade e a condenação tácita do racismo, sem apelar a campanhas panfletárias.
Depois de Obama ficará mais difícil aos portadores de intolerância racial vilipendiarem os que não nasceram com a tez alva. A visibilidade incomparável de Obama deixará registrado que integridade, humanidade, discernimento e elegância, bem como seus opostos, são traços da personalidade humana, e não têm nada a ver com a epiderme.
O figurino de Machado
Lição antiga, mas de difícil aprendizado. Aqui, nas paragens brasileiras, temos nossos próprios exemplos. Um deles nasceu no século XIX e tornou-se um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Embora ambientada quase toda no Rio antigo, a literatura de Machado de Assis (1839-1908) é universal. As caracterizações de seus personagens revelam a alma humana, com as vicissitudes, fraquezas e virtudes que independem da geografia.
Seus textos tornaram-se referência para lexicógrafos, gramáticos, ensaístas, cineastas, poetas e escritores, aqui e alhures. Sua arte inspirou as gerações posteriores, propiciando leituras e releituras de singular deleite.
A essência machadiana não é menor ou maior se agregada a ela uma característica genética do Bruxo do Cosme Velho. Machado era mulato.
Não foi pensando em sua cor, por óbvio, que o britânico John Gledson, um arguto estudioso de Machado, comparou-o a Dostoievski, Tchekhov, Kafka e Henry James. Machado era gênio, como definiram Harold Bloom e Carlos Fuentes, não por que era negro, mas por que escreveu como poucos.
Exemplo de sua virtuose encontra-se em “Quincas Borba” (1891). Numa das passagens mais líricas da literatura, Machado conclui seu romance com observação sucinta, mas abrangente, das aflições humanas.
“O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, estás assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens”. O Cruzeiro do Sul, anos-luz acima de nossas cabeças, é uma de tantas constelações que podem ser avistadas em noites desanuviadas.
Pois a distância e a provecta idade daquelas estrelas resplandecem sabedoria. Basta ver que desde tempos eternos o céu de ébano convive com a alvura das estrelas em serena harmonia e rútila beleza.
Assim como no universo machadiano, há espaço aqui na Terra para todos que quiserem contemplar o branco do Cruzeiro do Sul cercado pelo negro do cosmos. Sem discriminação.
* publicado em 07/06/2016