Desde as grandes manifestações de 2013, o Brasil trata seus principais problemas de forma dual. Tudo precisa ser polarizado, estigmatizado, agudizado.
Os eleitores – aqueles que elegem os políticos, depois dizem que não têm nada com isto -, assim como os eleitos, assumem um lado da querela geralmente por inércia. Se prejudica Lula, são contra. Se prejudica Bolsonaro, são contra.
Não há espaço para ponderações. As mediações são ignoradas. Os extremos são valorizados. A lógica é desprezada. Os sensatos, debochados. O raciocínio equilibrado, desestimulado.
Não seria diferente agora com a decisão sobre a possibilidade (não a obrigatoriedade) da prisão em segunda instância. O assunto é abordado conforme o interesse de lulistas e bolsonaristas. Ou antilavajatistas e lavajatistas.
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Embora tenham óbvia influência sobre a decisão dos sufetas supremos, melhor seria evitar as motivações conjunturais. O raciocínio equilibrado e ponderado deveria guiar a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
Afinal, há argumentos que sustentam as duas posições.
– A novidade no Direito brasiliano é o recurso em liberdade até a última instância, adotado entre 2009 e 2016. A regra no Brasil é a possibilidade da prisão após condenação em 1ª e 2ª instâncias.
– O duplo grau de jurisdição está previsto na Convenção Americana dos Direitos Humanos.
– A possibilidade da prisão em segunda instância é o sistema mais comum em democracias consolidadas.
– No sistema vigente, condenado em 1ª e 2ª instâncias o réu pode ser preso e, posteriormente, ter sua sentença anulada pelas 3ª e 4ª instâncias. Ou seja, um réu pode cumprir prisão e, posteriormente, ser considerado inocente.
– Um dos fundamentos do fazer justiça é punir o culpado, apartando-o, nos casos mais graves, do convívio com o restante da sociedade.
– A análise de fatos e provas (materialidade e autoria) se esgota na segunda instância. Se a autoria do delito for provada e sentenciada, o réu é considerado culpado. Isto não vai mudar com a nova decisão do STF.
– Cabe às 3ª e 4ª instâncias, após verificar aspectos do processo penal e as garantias do condenado, como o direito à ampla defesa e ao contraditório, manter, anular ou suspender liminarmente as sentenças das 1ª e 2ª instâncias. Este sistema de garantias não foi alterado com a possibilidade de prisão em 2ª instância.
– Hoje, após condenar um réu à prisão em 1ª e 2ª instâncias, é possível encarcerar o condenado. As instâncias superiores (3ª e 4ª) debilitam a sensação de justiça ao permitirem a prescrição criminal ou impedirem a execução da pena por conta de recursos processuais que não neguem a culpa do condenado ou não atestem violação do direito de defesa, por exemplo.
– Caso prevaleça a tese dos recursos em liberdade até a 4ª instância, a condenação arbitrada por duas instâncias (1ª e 2ª) – no mínimo, 4 juízes -, com direito ao contraditório e à ampla defesa, será considerada insuficiente para decretar a prisão. Já as prisões preventiva e temporária poderão ser decididas por um único juiz.
– Os advogados que defendem o recurso até a 4ª instância, antes da prisão definitiva do condenado, são os que defendem os clientes mais ricos e poderosos da República. Portanto, o julgamento do STF pode beneficiar os clientes mais ricos e poderosos da República – muitos deles suspeitos ou condenados por roubarem dinheiro público.
– O sistema de quatro instâncias permite àqueles que podem bancar um advogado caro a possibilidade de fugirem do cumprimento das penas impostas pela Justiça de 1º e 2º graus.
– A possibilidade de grande número de recursos, característica da Justiça brasiliana, favorece àqueles que podem bancar um advogado caro.
– Hoje, a culpa do réu é avaliada por um juiz de 1ª instância (que pode sentenciá-lo, mas não o prender por conta desta condenação). Na 2ª instância, um colegiado de juízes (no mínimo três) reexaminará todo o processo, mantendo ou revendo a condenação, podendo decretar a prisão.
– Caso todas as decisões, para serem executadas, precisarem ser validadas pelas 3ª e 4ª instâncias, sacramentar-se-á o princípio de que juízes de 1ª e 2ª instâncias são ineptos para determinar a prisão. Como, mais do que um direito, a liberdade é um instinto, razoável prever que todos os condenados pelas instâncias inferiores recorrerão às instâncias superiores. Deste modo, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o STF terão que arbitrar todas as decisões dos condenados que dispuserem de recursos para bancar um advogado caro.
– A possibilidade de recorrer em liberdade até a 4ª instância favorece advogados caros e bem relacionados que, desta forma, tenderão a esticar a ação até à prescrição, tornando o processo via de regra mais vantajoso financeiramente aos causídicos.
– O artigo 5º, inciso LVII da Constituição do Brasil (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), dispõe sobre a culpa do réu, mas não menciona a impossibilidade da prisão. Caso contrário, haveria contradição com a possibilidade, em qualquer fase do processo, da prisão preventiva.
– A mesma Constituição, evocada pelos que defendem o recurso até a 4ª instância (artigo 5º, inciso LVII), determina que é “objetivo fundamental da República” “construir uma sociedade JUSTA, livre e solidária” (artigo 3º, inciso I).
– A impunidade de criminosos implica injustiça com as vítimas. “Construir uma sociedade justa”, como postulado na Constituição (artigo 3º, inciso I), significa punir os culpados fazendo justiça às vítimas. Nos casos de corrupção, as vítimas são todos os pagadores de impostos.
– As revelações do The Intercept Brasil evidenciaram o dirigismo do Ministério Público nos processos da Lava-Jato, embora não tenham alterado o cometimento dos crimes.
– A Justiça brasiliana sempre atendeu com esmero os mais abonados (que recrutam advogados caros e bem relacionados).
– A novidade, a partir da Lava-Jato, foi o encarceramento de ricos, brancos e poderosos, fato inédito no Brasil.