Qual o trabalhador que não bate ponto, tem três meses de férias por ano, não presta contas a ninguém, decide quando e se vai trabalhar, nunca é cobrado por produtividade no trabalho, pode ficar indefinidamente com uma tarefa sobre a mesa, pode decidir que uma tarefa nova tem prioridade em relação a uma tarefa antiga, caso cometa um delito grave é compulsoriamente aposentado com salário integral e, muitas vezes, recebe salários acima do teto constitucional?
Acertou quem marcou juízes. Procuradores, de um modo geral, desfrutam das mesmas regalias. Ah, faltou dizer: a turma da toga pode ficar indefinidamente nesta condição sem nunca ser demitida.
Certa vez, uma experiente servidora do Senado descreveu-me sua definição de senadores. “São entidades. Cada um é uma entidade, diferente do que acontece na Câmara”.
Sim, parlamentares federais são muito poderosos. Mas não têm as regalias disponíveis àquelas duas categorias do serviço público.
Poder eterno
A principal diferença, sem dúvida, é vitaliciedade – ou seja, o poder eterno. Deputados e senadores têm mandato, dependem do escrutínio do eleitor para continuarem em suas atividades.
Quem se queixa de um parlamentar deve, antes, queixar-se dos eleitores que o elegeram, pois ninguém (tirante os suplentes de senadores) chega ao Legislativo a pé. Já juízes e procuradores, depois de passarem por uma única prova na vida, serão eternamente… juízes e procuradores. Uma vez empossados, empossados ficarão.
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Esta condição coloca os membros do Judiciário e do Ministério Público num pedestal inalcançável aos demais brasileiros. Até bem pouco temo, sequer cogitar-se-ia um questionamento como este texto. Era melhor não mexer com os doutores da lei.
Diante deste poder incomensurável que desfrutam, juízes e procuradores, com o apoio de delegados e policiais militares, insurgiram-se contra a Lei de Abuso de Autoridade. Como se autoridades não cometessem abusos.
Quem, leitor, desconhece um caso de abuso de um servidor, por menos poder que tivesse o barnabé em sua repartição? São muitos e são rotineiros.
Quem, leitora, nunca leu aquelas placas intimidadoras? “É crime desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”.
E a tal da “fé pública”? De acordo com este princípio, servidores não erram, não mentem, não cometem deslizes. Se dizem que você, cidadão, errou, você errou; c’est fini.
Nada tema
De qualquer jeito, mesmo que o capitão-mor Jair Bolsonaro resolvesse sancionar integralmente o texto aprovado pela maioria da Câmara e do Senado – o que não deve acontecer -, servidores públicos não tem com o que se preocupar. A menos que desconfiem dos juízes de nossa terra.
“Se o cidadão se sentir abusado pelo Estado
sua única opção será recorrer… ao Estado”.
No alvoroço que se forma em torno da Lei de Abuso de Autoridade, esqueceu-se o óbvio. Quem vai julgar se houve abuso não são os parlamentares.
Os próprios juízes, dotados de acentuado esprit de corp, julgarão seus pares. Ou seja, juízes decidirão se juízes e demais servidores públicos abusaram da patuleia. Além disso, procuradores farão o juízo de que abuso denunciar.
A não ser que se desconfie do equilíbrio, lisura, equidistância e senso de justiça dos magistrados e procuradores desta terra que Camões esquivou-se de registrar em seu Lusíadas, nada há o que temer. Como aquele bordão de Lost in the Space, “Nada tema. Com juízes, não há problema”.
O outro lado
Se vingar, a nova lei vai preencher uma lacuna, como bem registrou o editorialista do Estadão de sexta, 16. “Já havia no Direito brasileiro o crime de desacato à autoridade. Faltava o outro lado – o crime de abuso de autoridade”.
Enfim, o projeto aprovado pelo Congresso Nacional terá, pelo menos, um mérito. Estabelecer alguma proteção ao cidadão, mais fraco, contra o Estado, mais forte.
A choldra, porém, continuará refém do Estado gigamenso, invasivo e dominador. Se se sentir abusada pelo Estado sua única opção será recorrer… ao Estado.