Talvez o silêncio mais ensurdecedor seja o berro das multidões convictas. Convertidos convencendo-se da certeza de suas convicções provocam a estridência dos moucos.
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Com a colaboração da maioria de seus eleitores, o Brasil alcançou nível elevado de surdez. Parte expressiva dos brasilianos acredita somente no que sai de sua boca ou da garganta dos iguais.
É assim com um terço que segue o petismo. Enfermidade semelhante acomete o terço bolsonarista. Em ambos os extremos, doutrinadores loquazes repetem crenças e crendices para sequazes inclinados à ilusão, sobretudo pelas redes antissociais.
Moucos, não ouvem e não veem. As palavras de ordem que proferem compõem o alarido ensurdecedor que desestimula o raciocínio e empareda a razão.
O professor Pablo Ortellado escreveu: “Precisamos deixar um pouco de lado nossos preconceitos e escutar o que um terço do país está dizendo”. Sua admoestação partiu de um recente incidente na Câmara Municipal de Porto Alegre, onde uma militante da chamada direita foi taxada de racista e nazista.
Ortellado assistiu aos vídeos e concluiu que o entrevero não corroborava as conclusões da chamada esquerda. A militante antivacina considerava os vereadores como “empregados” do povo e classificava o passaporte da vacina como “política nazista”. Seus argumentos são lugares-comuns nas escaramuças verbais e não diferiram dos utilizados pela militância da chamada esquerda.
Definindo-se como progressista e oposicionista, o autor alerta para o “nosso preconceito“. Por mais “equivocada e perigosa” que seja a postura antivacina, a manifestação é um direito. A sociedade lúcida falhou em educar esta gente ou alguém foi mais eficiente em ludibriá-la.
Predomínio extremista
Escorraçar adversários seria apenas briga de torcidas se se limitassem a pequenos grupos. Não é com isto que agora nos deparamos, pois, juntos, petistas e bolsonaristas equivalem a mais da metade da população.
Sim, há em todos os recantos fanáticos com todas as certezas e nenhuma dúvida. Estes se apegam a convicções definitivas e ao ódio eterno como espessante de suas ideologias. Refutam o pensamento crítico e rejeitam submeter suas certezas à análise do contraditório ou ao pensamento divergente, faculdades que fizeram o Homo sapiens evoluir. Supondo-se que este sectarismo esteja majoritariamente enraizado, vislumbra-se um cenário desolador.
Se, porém, a maioria não estiver plenamente rendida à intolerância política, o caminho democrático – que requer paciência argumentativa e ouvidos abertos – está no horizonte. Este esforço deveria envolver a academia e a imprensa, hoje plenamente engajadas como militância antibolsonarista. Defender a democracia, vilipendiada pelo hodierno mandatário, não implica enxotar todo apoiador do capitão-mor. Fosse assim, o PT, com seu renitente apoio a ditaduras amigas e negacionismo da corrupção recorde, tampouco deveria merecer o beneplácito de acadêmicos e jornalistas.
Farinhas de muitos sacos
Caso a massa militante de um lado e de outro fosse homogênea, o apaziguamento entre diferentes provavelmente tornar-se-ia impraticável. Não é esta a realidade. Dentro de cada grupo político há divergências na forma de conduzir a economia, no modo de enfrentar a criminalidade, sobre como estruturar a educação.
Crentes de todos os matizes ideológicos (católicos, evangélicos) temem a degradação da família cristã diante da pauta de costumes. O estado mínimo, em que pese seu conceito elástico, afasta os intervencionistas, para quem apenas governos são capazes de conduzir políticas públicas de inclusão social e econômica.
Estes dois temas exibem, ao mesmo tempo, a (1) heterogeneidade dos grandes grupos que protagonizam a política brasiliana e a (2) obsolescência da dicotomia esquerda x direita. Um eleitor pode não gostar do presidente Jair Bolsonaro, mas o apoia devido ao apelo da segurança pública. Outro eleitor não se identifica com o PT, mas crê que a distribuição de renda (Bolsa Família) será fortalecida com a volta de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.
Consensos são raros na política. Mas acordos amplos são plausíveis. Para isto, porém, são necessárias moderação na retórica e disposição para negociar. O Brasil radicalizado entre extremistas deificados implode esta possibilidade. Vociferam convicções inabaláveis, entoam definições de manual, negam malfeitos e exercem a intolerância como regra. Cada lado lê, ouve, assiste, compartilha e aplaude a receita decorada. Sem tomar conhecimento da divergência nem cotejar pontos de vista distintos não corre o risco de perceber-se equivocado.
Falar com estrépito cumpre, assim, dois propósitos. Convenço-me cada mais de minhas verdades; fecho-me à divergência e ao contraditório. A dicotomia ora predominante no Brasil dissipa o pensamento democrático. Como antolhos ideológicos, subverte a tolerância e a moderação, estimulantes da convivência civilizada. Nesta algaravia, as partes “se retroalimentam patologicamente“, como pontuou The Economist. Com certeza sobre suas certezas almejam o poder a qualquer custo, pois creem serem os únicos capazes de conduzir o povo à salvação.
E os moderados e tolerantes? Falam baixo e sem estridência; não são ouvidos. Fazer o quê?