Entre as múltiplas leituras que nos permite a vitória de Joe Biden, está a quase óbvia constatação de que, sim, é possível derrotar o monstro do radicalismo e do atraso. Mas a peleja mostrou que não dá para imaginar que a extrema direita esteja morta e enterrada e que esse período de trevas tenha sido um ponto fora da curva na trajetória de países como os EUA — e, quem sabe, o Brasil. Ficou claro que é preciso suar a camisa, como fez o sleepy Biden com seu discurso de união, cujo sucesso está levando muita gente por aqui a pegar carona.
Não é tão simples assim, porém, pegar carona com Joe Biden, dadas as diferenças brutais entre nós e eles. O auto-intitulado “centro”, também conhecido como “direita cheirosa”, saiu na frente. Sergio Moro, João Doria e o apresentador Luciano Huck foram competentes e rápidos na ocupação de espaços. Além de entrevistas e declarações saudando o desfecho da eleição americana, trataram de divulgar seus próprios encontros: Huck com Moro em outubro, Moro com Dória em setembro e até mesmo uma reunião de Doria com Huck em janeiro.
Tudo isso foi antes da vitória de Biden, mas, para efeito de marketing político, está surgindo agora uma frente antibolsonaro no campo da centro-direita com razoáveis chances de atrair o apoio de setores do establishment, inclusive da mídia. Isso não é pouco, embora a probabilidade de brigarem na hora de escolher um cabeça de chapa seja grande. O movimento mais claro parece ser o do governador de São Paulo, aproximando-se para, mais adiante, tentar engolir os outros dois, neófitos no ramo.
Enquanto a centro-direita dá seu passinho adiante, as esquerdas mais uma vez se dividem. Alguns vêem uma luz no fim do túnel e pregam a formação de uma frente progressista contra o bolsonarismo, juntando forças do centro e da esquerda — como verbalizou já no sábado o governador do Maranhão, Flavio Dino. Outros setores, porém, apontam na vítória democrata a eleição de mais um liberal imperialista norte-americano que pouca diferença vai fazer.
Trata-se, porém, de um equívoco. Não se pode ignorar que a troca de Trump por Biden é uma mudança importante, que vai do fortalecimento de valores humanistas e da democracia ao isolamento que Bolsonaro, com o carimbo da derrota, deve amargar. No mínimo, enfraquece a narrativa do presidente da República rumo a 2022. Não usar isso é perder uma boa oportunidade de aproveitar a mudança no clima.
Dificilmente, no final dessa história, haverá espaço, na atual conjuntura política brasileira, para formação de grandes frentes à direita, à esquerda ou ao centro. As ambições pessoais não vão deixar. Mas o discurso que levou Biden à vitória se fortaleceu e não pode ser ignorado por aqui.