Dizem grandes juristas que as virtudes devem estar nas instituições, e não necessariamente nos cidadãos. Não há ação de governo que não esteja sujeita a irregularidades, distorções, corrupção, enfim. Cabe às instituições responsáveis fiscalizá-las corrigi-las, punir. No caso da vacinação contra a Covid-19 no país, é função dos governos, em suas esferas federal, estaduais e municipais, coibir os desvios no primeiro momento, acionando em seguida Polícia, Ministério Público e Justiça.
Ninguém nunca teve ilusões de que não haveria fura-filas, desobediência à lista de prioridades, espertezas diversas para passar para trás – sempre eles – os mais vulneráveis. O problema é quando os dirigentes das próprias instituições, ou seja, o governo, é o responsável pela bandalheira.
Não falo aqui só dos prefeitos e de autoridades dos estados e municípios que estão manobrando para vacinar primeiro as mulheres de suas vidas ou usam uma mão de gato na distribuição das doses para favorecer os amigos. Isso é muito feio, um comportamento detestável, mas acaba sendo exposto numa sociedade que, mais ou menos vigilante, aponta os casos em que se sente lesada. O grande problema é o comportamento dos que fazem as regras e podem alterá-las a seu favor, promovendo injustiças e prejudicando a coletividade para levar a melhor politicamente.
É o caso, por exemplo, de Jair Bolsonaro quando dá aos seus eleitores caminhoneiros o direito de se vacinar prioritariamente enquanto categoria. Vão passar na frente de idosos, professores e outros que correm mais risco. Não se põe aqui em dúvida a importância do trabalho dos caminhoneiros, mas por que devem ser um grupo prioritário? Lixeiros, comerciários, atendentes de recepção e uma infinidade de outras atividades também oferecem risco e deveriam ser incluídas, então. Não foram, talvez por não terem o mesmo poder de fogo político junto ao presidente da República.
A ação mais nefasta do governo para inverter prioridades e tirar a credibilidade da “fila” prevista no Plano Nacional de Imunização, porém, foi a carta enviada ao laboratório AstraZeneca autorizando a compra, por empresários, de 33 milhões de doses de sua vacina. Metade delas seria doada ao SUS, mas as demais seriam utilizadas para imunizar os funcionários dessas empresas – que se constituiriam, na prática, num grupo prioritário a receber a vacina antes de idosos, profissionais de saúde, pessoas com comorbidades, etc.
Ao fim e ao cabo, foi um mico: a AstraZeneca recuou e disse que, por enquanto, só vai vender vacinas para governos e organismos internacionais. O governo podia ter passado sem essa, mas expôs, cruamente, o fato de que não está nem aí para critérios de justiça na distribuição das vacinas. Os empresários e clínicas do setor privado continuam negociando a compra separada de vacinas, agora na Índia, e em algum momento vão conseguir. Nossa desigualdade crônica terá mais um mecanismo de perpetuação: quem tem dinheiro, vacina; quem não tem, não vacina.