A ressaca da maré alta nas urnas de todo o país parece ter chegado com algum atraso às residências oficiais no Lago Sul e aos gabinetes na Praça dos Três Poderes, endereços nobres em Brasília. Às vésperas da troca de guarda no Palácio do Planalto, com um imprevisível Jair Bolsonaro assumindo o leme, soou um salve quem puder puxado por parlamentares que perderam as eleições.
Se eles tivessem conseguido aprovar tudo que desejavam deixariam o caos como herança para o futuro governo Bolsonaro. O senador Eunício Oliveira e o deputado Rodrigo Maia gabam-se de terem impedidos variadas pautas bombas. Quem avalia de fora o que eles deixaram passar no Congresso tem uma impressão diferente. Entre outros petardos, Eunício bancou o reajuste dos salários dos ministros do STF, com seu bilionário efeito cascata.
Encrencado na Justiça, Michel Temer fingiu que estava em dúvida e, como se esperava, sancionou o aumento dos juízes. Não gostou nem um pouco das pancadas que levou, especialmente nas redes sociais. Nessa terça-feira (18), ele foi a Montevidéu se despedir do Mercosul. Na sua ausência, em pequeno expediente no Palácio do Planalto, Rodrigo Maia aproveitou para sancionar o projeto que ele mesmo havia patrocinado na Câmara de anistiar os municípios que gastaram mais do que podiam com infladas folhas de pagamento.
Parecia jogo combinado. Mas o Planalto soltou nota informando que a recomendação da área técnica do governo era para vetar o agrado aos prefeitos. Maia teria usado um parecer de assessores da Câmara para atropelar Temer. Maia desmentiu o Planalto e disse que não recebeu parecer algum da área econômica. Ficou por isso mesmo. A conta, claro, vai ser espetada no contribuinte.
Se era até previsível que políticos rejeitados nas urnas buscassem algum proveito no final de mandato, como reabrir as portas para o comando de empresas estatais, ministros do STF exageram na dose antes de entrar de férias. Ricardo Lewandowski simplesmente repetiu o roteiro do ano passado: no apagar das luzes do ano judiciário, ele assumiu de novo o papel de Papai Noel e concedeu por liminar reajuste ao funcionalismo público federal a um custo estimado em cerca de R$ 4,7 bilhões. Uma evidente, talvez justa, notícia para quem vai receber um pouco mais no contracheque. Ruim é para quem, como sempre, vai sobrar a conta.
Enquanto Lewandowski fazia bondade com o chapéu alheio, o ministro Marco Aurélio Mello resolveu com canetadas transformar em vitórias derrotas que sofreu no colegiado do STF. Desde que, em uma decisão inusitada, afastou Renan Calheiros da presidência do Senado e teve que engolir a desobediência do Senado, endossada por seus colegas no tribunal, parece que ficou um travo na sua garganta.
Nessa quarta-feira (19), sem ouvir ninguém, ele acatou o pedido de adversários de Renan e mudou de voto secreto para aberto o processo de escolha do presidente do Senado. A alegação é de que o voto secreto, previsto no regimento do Senado, não consta da Constituição. O voto secreto elege também os presidentes da Câmara dos Deputados e do próprio STF pelo processo de votação definido por seus respectivos regimentos internos.
Essa enxerida em questão interna do Senado já foi uma surpresa para seus colegas. Mas Marco Aurélio Mello manteve sigilo também sobre outra trapalhada com gravidade bem maior. Ele participou de um almoço de fim de ano com outros ministros do STF, após a sessão de encerramento do ano judicial, e não contou a nenhum deles sobre a bomba que detonaria logo depois.
Em uma decisão monocrática que revogou uma decisão colegiada, Marco Aurélio mandou soltar quem estiver na cadeia cumprindo sentença por ter sido condenado em duas instâncias judiciais. Excluiu apenas os que cumprem prisão preventiva. Na interpretação de alguns colegas, ele pôs em xeque o próprio Supremo. Se um ministro, qualquer que seja, pode substituir o coletivo como a palavra final, vira bagunça e afeta a segurança jurídica.
O PT e parte dos advogados que defendem condenados por corrupção na Lava Jato e em outras investigações comemoraram. Menos de uma hora depois do anúncio da decisão de Marco Aurélio, os advogados do Lula já requeriam seu alvará de soltura. Para apressar a saída, pediam que fosse dispensado o exame de corpo de delito. Dirigentes do partido aproveitaram para bater bumbo e tentar reanimar o movimento Lula Livre, bastante esvaziado após a derrota eleitoral nas urnas. Mesmo depois da liminar ter sido cassada, eles insistiam com Marco Aurélio para emitir uma alvará de soltura para Lula.
Esse movimento petista faz parte do jogo. O mais grave é que ninguém consegue avaliar o alcance da canetada de Marco Aurélio. O ministro Dias Toffoli, ao cassar a liminar, estimou que ela tiraria da cadeia mais de 150 mil presos. Procuradores, policiais e juízes dizem que nessa leva sairiam condenados por corrupção, tráfico de drogas e de armas, estupros, assassinatos…
Diante desse liberou geral, o controvertido indulto natalino de Temer virou café pequeno.
O Judiciário e o Legislativo estão de recesso. O atual governo ainda tem uns dez dias antes de passar o bastão. Espera-se que até lá não faça novas trapalhadas.
A conferir.