Quem ontem à noite ouviu as notícias do Poder Judiciário pela Voz do Brasil pode ter ficado com a impressão errada do longo julgamento sobre o compartilhamento de dados entre os órgãos estatais de controle e de fiscalização. Após a informação seca sobre o resultado, uma sonora do voto de Gilmar Mendes sobre como, em sua ótica, deveriam ser os procedimentos entrou como expressão da tese vitoriosa. Gilmar tergiversou tanto nas preliminares de seu voto que seu colega Luiz Fux indagou após sua fala: “Sua conclusão foi de que é lícito ou ilícito?”, tirando Gilmar do sério.
Assim como surpreendeu essa escolha da fala de Gilmar Mendes, os autos vão registrar que seu parceiro Dias Toffoli também saiu vitorioso do julgamento, e inclusive ficará encarregado da redação do acórdão, tarefa atribuída ao autor do voto vencedor. Isso porque na undécima hora, confirmada sua derrota fragorosa, ele simplesmente mudou de lado. É direito dele. Mas o país não precisava pagar um custo tão alto para tão pouca convicção do presidente do Supremo.
Dias Toffoli se valeu de sua eventual condição de presidente do STF para fazer uma lambança sem precedentes no tribunal. Misturou abacaxi com banana — constatação unânime de seus colegas no STF — para interromper as investigações no Rio de Janeiro sobre um esquema de corrupção no gabinete na Assembleia Legislativa do hoje senador Flavio Bolsonaro. Suspendeu milhares de investigação – cerca de 1500 na esfera federal — sobre corrupção e crime organizado país afora. Pôs na berlinda o trabalho de algumas das nossas melhores instituições públicas. Ousou quebrar o sigilo de cerca de 600 mil contas de pessoas físicas e jurídicas. Em sua até agora derradeira versão de voto, Toffoli tentou passar uma borracha sobre tudo isso.
Em nome do quê? Em março, Toffoli e Gilmar Mendes e uma penca de caciques políticos, entre eles Rodrigo Maia, chegaram à conclusão que os bárbaros da Lava Jato, tendo Sérgio Moro como ponta de lança, tinham um projeto de fazer terra arrasada nos poderes em Brasília. A conquista do comando do Coaf fecharia o cerco. Na época, escrevi aqui sobre essa paranoia. Definiram, então, uma estratégia para cortar as asas de Moro e barrar os avanços da Lava Jato.
Quando Jair Bolsonaro, que não consegue se livrar dos esqueletos acumulados por sua família em longa trajetória, aderiu ao jogo dos caciques dos outros poderes, o establishment político comemorou o fim da Lava Jato. Os diálogos entre procuradores divulgados pelo The Intercept e seus parceiros, mesmo pinçados e editados, serviram de narrativa, apesar de serem corriqueiros nas relações entre investigadores, advogados e juízes. Em todas as esferas.
A canetada de Toffoli que beneficiou Flávio Bolsonaro – ratificada depois por Gilmar Mendes — virou uma espécie de carimbo do acordão. A desfaçatez de Toffoli que dizia a todos interlocutores que seus atos tinham respaldo da maioria do STF ganhou ares de verdade com algumas inesperadas decisões do tribunal. A decisão de que as razões finais do delatados deveriam ser apresentadas depois da última manifestação dos delatores surpreendeu até o lobby de criminalistas da linha de frente contra a Lava Jato. Mas desde esse julgamento a eventual maioria do STF mostrou disposição para conter o que considera excessos da Lava Jato, mas sem saber bem o que fazer para não escancarar de novo a eterna farra da corrupção e da impunidade. O mesmo dilema pontuou a votação sobre em que momento se possa começar a cumprir a pena.
A melhor expressão disso é o contorcionismo de Dias Toffoli, que assusta aliados e adversários de suas posições no tribunal, e manda para o espaço o tal acordão. Alguns parceiros recentes, perplexos, dizem que a Lava Jato deveria erguer uma estátua para Toffolli.
A conferir.