O ministro Gilmar Mendes faz jus à fama de campeão no quesito canetada para tirar gente enrolada da cadeia. Quando é relator costuma optar por decisões monocráticas. Se a decisão é de outro colega, busca outro tipo de jeitinho. Nos últimos dois meses, na condição de atual presidente da Segunda Turma do STF, aproveitou a licença médica do decano Celso de Mello e conseguiu pelo menos 10 dez empates que beneficiaram investigados, réus e condenados acusados de corrupção.
Em inúmeras decisões polêmicas, com interpretações alargadas para driblar inclusive jurisprudências do tribunal, Gilmar Mendes chocou a sociedade e até os próprios colegas. Há um mês, o ministro Felix Fischer, relator do caso no Superior Tribunal de Justiça, mandou de volta para a cadeia Fabrício Queiroz — operador das rachadinhas do clã Bolsonaro — e sua mulher Márcia Oliveira Aguiar. No dia seguinte, Gilmar mandou o casal retornar para a prisão domiciliar. Suas justificativas são inacreditáveis.
Alegou que os fatos narrados para a prisão, que teriam ocorridos entre 2018 e 2019, não tinham atualidade para respaldar as prisões. Ignorou solenemente que Queiroz foi preso, em junho de 2020, quando estava escondido em uma casa em Atibaia de Frederich Wassef, então advogado do clã Bolsonaro, e sua mulher ganhou a prisão domiciliar quando ainda estava foragida. Habeas-corpus como esse são rotineiramente concedidos por Gilmar.
Em janeiro, o Estadão divulgou um amplo levantamento feito no acervo processual do STF em que ele aparecia como recordista absoluto nos últimos dez anos na concessão monocrática de habeas-corpus. Até então eram 620 decisões, praticamente o dobro do segundo colocado nesse ranking. São parte desses habeas-corpus as canetadas que reverteram várias sentenças na Lava Jato, mantidas nos recursos ordinários em todas as instâncias judiciais.
Em entrevista à revista Veja, após tomar posse como novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux expôs algumas de suas prioridades no cargo. Após enfatizar que o tribunal deve ater-se ao controle da constitucionalidade, sua principal razão de ser, ele pôs o dedo na ferida: ” A utilização epidêmica do STF para julgamento de habeas-corpus é inacreditável. Transformaram o STF em quarta instância. É urgente uma mudança regimental quanto à competência das matérias sujeitas a Corte”.
Não é apenas Gilmar quem utiliza o habeas-corpus para reverter regulares decisões judiciais, atropelando instâncias e as próprias normas do STF. Mas é Gilmar quem mais usa e abusa desse expediente. Se Fux efetivamente conseguir fechar esse ralo, que virou o alvo predileto de criminalistas para manter livres, leves e soltos seus clientes de colarinho branco, dará uma forte pancada na impunidade. Mas certamente enfrentará forte oposição.
Há uma ala no STF. integrada pelo próprio Gilmar, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, focada no combate à Lava Jato e a outras grandes investigações sobre corrupção. Na ótica deles, os inimigos são o ex-juiz Sérgio Moro e as forças tarefas. Alguns aparentemente em causa própria. Em sua última edição, a matéria de capa da revista Crusoé mostra planilhas e delações de empreiteiros que envolvem Dias Toffoli. Mas háoutra corrente no Supremo que não quer enfraquecer o combate à corrupção. Luiz Fux pertence a esse grupo.
Em seu discurso de posse, na quinta-feira passada, assistido de maneira virtual pela maioria dos ministros, Luiz Fux, acompanhado na mesa por Bolsonaro e Rodrigo Maia — parceiros no jogo contra a Lava Jato — deu vários recados. Um dos mais relevantes foi sobre a necessidade se prosseguir no combate à corrupção e à impunidade.
— Não mediremos esforços para o fortalecimento do combate à corrupção, que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país. Como no mito da caverna de Platão, a sociedade brasileira não aceita mais o retrocesso à escuridão e, nessa perspectiva, não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção. Aqueles que apostam na desonestidade como meio de vida não encontrarão em mim qualquer condescendência, tolerância ou mesmo uma criativa exegese do Direito — afirmou Fux.
Para que não pairassem dúvidas, Fux deu exemplos concretos: “Não permitiremos que obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro, como ocorreu no Mensalão e tem ocorrido com a Lava Jato.”.
Já como presidente do Supremo, Fux recebeu um relatório do colega Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, em que avalia que os trabalhos da operação “são pautados pela legalidade constitucional” e combatem “a renitente garantia da impunidade no país”. Fachin também rebate o verdadeiro mantra dos que dentro e fora do aparelho judicial combatem as operações sobre grandes esquemas de corrupção.
— A polarização impõe um falso dilema à sociedade: ou se combate o `punitivismo`
ou retomaremos o arbítrio, como se o estado de coisas anterior, no qual grassou por anos a ineficiência e deitou raízes o cupim da República, fosse o único apanágio da democracia – escreveu Fachin em seu relatório entregue ao novo presidente do STF.
Há seis anos, a Lava Jato vive nessa gangorra. Quanto mais alcançava poderosos no universo político e empresarial, historicamente impunes, e ganhava apoio popular, também atraía adversários de peso que, ao longo de todo esse tempo, tentaram barrar seus avanços contra a corrupção. Por mais que o pêndulo oscilasse, a espinha dorsal das apurações mantém-se praticamente intacta. Diante de adversários tão poderosos que, mesmo sendo inimigos entre si, têm a Lava Jato como alvo comum, a dúvida é até aonde vai a sua resiliência.
A conferir.