A ilusão do poder pode cegar quem o exerce. Uns, por arrogância; outros, por desespero. Às vezes, por ambos. Gilmar Mendes é um bom exemplo disso. A cada performance, ele se supera, seja em entrevistas à imprensa ou nas sessões do STF.
Nessa quarta-feira (11), no julgamento do habeas-corpus para Antonio Palocci, expôs uma narrativa sob medida para se contrapor à série “O Mecanismo”, do cineasta José Padilha, exibida pelo Netflix, inspirada na Operação Lava Jato.
A série, polêmica, apresenta o gigantesco esquema de corrupção no país como resultado de um amplo e longo arranjo entre as elites políticas, empresariais e burocráticas para assaltar os cofres públicos.
Quanto a isso, independente de licenças ficcionais, não há dúvida.
Os tribunais superiores, até pelo emaranhado de recursos, há tempos viraram o porto seguro da impunidade. O julgamento do Mensalão abriu o caminho para a virada do jogo pela Lava Jato e outras investigações.
Essa nova postura da Justiça agradou a uns e incomodou a outros.
Gilmar Mendes parecia antenado com a mudança. Votou a favor da permissão para que a pena, a partir da condenação em segunda instância, possa começar a ser cumprida. Foi responsável, também, para que a Justiça Eleitoral investigasse as maracutaias na eleição da chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.
No meio do caminho, no entanto, mudou de ideia. Se disse arrependido do voto no STF que ajudou a pôr poderosos na cadeia e, com uma impressionante ginástica verbal, livrou a chapa Dilma e Temer de uma cassação. Dilma já estava fora do poder. Temer foi salvo pelo voto de Gilmar.
Depois dessas guinadas, Gilmar anda cada vez mais inquieto.
Não consegue sequer esperar seu momento de votar, fura a fila e atropela o rito do STF. Semana passada, ele antecipou seu voto, com o pretexto de que estava de passagem no Brasil entre compromissos na filial portuguesa de um instituto do qual é sócio. Ele cruzou o Oceano Atlântico só para participar da votação do habeas-corpus para Lula e, mal chegou, disse que tinha de voltar logo. A interpretação até entre alguns de seus colegas é de que ele teve a pretensão de influenciar o voto da ministra Rosa Weber.
Se esse foi o propósito, não deu certo.
Nessa quarta-feira, em um aparte antes da sua hora de votar, Gilmar descreveu o que chamou de “O Sistema”, que está impondo o arbítrio no país, e deve ser contido antes do Brasil ser completamente dominado pelo obscurantismo. Pela narrativa de Gilmar, são os policiais federais, os procuradores da República e os juízes federais, em conluio com a imprensa, que ameaçam a democracia, além de serem um foco de corrupção. “Se aceitarmos isso, no mínimo vamos ser cúmplices de grandes patifarias”.
Em uma verdadeira colcha de retalhos, Gilmar Mendes pinçou notinhas daqui e dali na imprensa, citou o notório caso do procurador Marcelo Miller, e repetiu várias vezes que tem ouvido barbaridades dos advogados de defesa. Disse até que o juiz Sérgio Moro é quem escolhe os advogados dos réus. “Esse sujeito fala com Deus?”, dramatizou.
Menos, Gilmar. Se tem uma turma, até por dever de ofício, que a partir da Lava Jato passou a peitar os juízes federais, são os renomados advogados criminalistas, cujos clientes entraram na mira das investigações sobre corrupção. Eles não costumam ter papas na língua.
Como, então, eles sussurram arbitrariedades e corrupção de agentes públicos no ouvido do ministro e não as denunciam?
A narrativa de Gilmar ficou tão sem pé nem cabeça que Luiz Fux teve de lhe lembrar que um juiz, qualquer juiz, diante de tais acusações, teria que mandar investigá-las.
Gilmar não se conforma com a maioria apertada do STF que se opõe a decisões que possam beneficiar a impunidade. Não poupa nem seus colegas. Diz que vários deles, talvez a maioria, foi escolhida pelos presidentes Lula e Dilma Rousseff por suas ligações com movimentos LGTB, MST… “O resultado está aí, é esse direito penal totalitário”.
Se Gilmar Mendes anda tão nervoso, imagine como estão Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Collor, Gleisi Hoffmann, Renan Calheiros, Edison Lobão, entre outros, todos na mira dos investigadores.
Chiliques não resolvem o problema. O fim da eterna impunidade, sim.