Derrotada a esquerda armada, a ditadura focou a repressão nos que a combatiam por métodos pacíficos. A passagem do bastão do ditador Garrastazu Medici para o general Ernesto Geisel incluiu a continuidade da matança dos que eles chamavam de subversivos, inimigos internos, mesmo os que se opunham à luta armada.
Foi assim que, entre 1974 e 1975, foram assassinados 10 dos 33 membros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outros tantos militantes.
Essa política de extermínio não era iniciativa de porões descontrolados, como sempre se tentou engabelar a opinião pública. Era oficial, tinha a chancela do Palácio do Planalto. Em “A Ditadura Derrotada”, Elio Gaspari revela uma gravação em que Geisel, após ouvir o relato do general Dale Coutinho sobre o extermínio de guerrilheiros no Araguaia, diz que “esse troço de matar é uma barbaridade, mas tem de ser”.
O documento secreto da CIA, revelado agora pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio Vargas, escancara o fato de que o porão obedecia aos mais importantes gabinetes do Palácio do Planalto. O memorando enviado por William Colby, diretor-geral da CIA, a Henry Kissinger, então todo poderoso secretário de Estado, impressiona também por outros motivos. Pelo que revela, no dia 1 de abril de 1974, depois de uma reflexão durante o fim de semana, Geisel autorizou a continuidade da política de execuções sumárias, mas impôs duas condições: 1) – A definição de quem deveria ser assassinado teria de ser feita “com muito cuidado para que apenas subversivos perigosos fossem assassinados”; 2) – Quem daria a palavra final, o senhor da vida e da morte, seria o general João Figueiredo, então ministro do SNI, “cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada”.
O tal documento chegou à mesa de Kissinger no dia 11 de abril, apenas 10 dias depois do OK de Geisel à execuções sumárias de “subversivos perigosos”. As fontes não são citadas. Mas a riqueza de detalhes, inclusive de uma conversa aparentemente a sós entre Geisel e Figueiredo, é um indício de essas reuniões poderiam ter sido gravadas.
Além de Geisel, quem fica muito mal nessa história é Figueiredo. Se ele até então não tivesse sujado as mãos com torturas e assassinatos, depois dessa delegação expressa passou a ter responsabilidade direta sobre matanças como as dos dirigentes do PCB.
Figueiredo, que era linha-dura, começou a trocar de farda quando passou a disputar com o general Sylvio Frota a sucessão de Geisel. Frota apostava no apoio dos quartéis para barrar a abertura política lenta, gradual e segura, concebida pelo general Golbery do Couto e Silva, e tocada por Geisel, que resultou na revogação do AI-5 e abriu caminho para a anistia ampla, geral e recíproca. Enquanto fracassava a proposta de Sylvio Frota de manutenção das trevas, com o apoio de Geisel e o script de Golbery, Figueiredo vestia o figurino de condutor da transição para o fim da ditadura.
Ganhou a guerra interna. Virou presidente da República. Quando lhe disseram que a linha-dura poderia atrapalhar seus planos, saiu-se com o famoso “prendo e arrebento” quem entrasse em seu caminho.
Não foi bem assim. Dois anos após assumir o mandato, o fracasso de um atentado no Rio pôs o governo Figueiredo em xeque. Após ataques a bancas e a OAB, os porões da ditadura fizeram uma aposta grande: explodir bombas em um show de música para comemorar o Dia do Trabalhador no Riocentro, uma festa que reuniu mais de 20 mil pessoas para cobrar a volta da democracia plena. Deu ruim para os terroristas dos órgãos de repressão. Uma das bombas explodiu no colo dos militares dentro de um Puma, carro esportivo de sucesso naquela época.
Foi um barata voa. Alguns generais e coronéis ainda tentaram sustentar a farsa, concebida antes do fracasso do atentado, de que a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) — um grupo armado desmantelado pela repressão anos antes — seria o responsável pelas bombas.
Evidente que não colou. O atentado explodiu também na cozinha de Figueiredo. Seus parceiros de SNI Otávio Medeiros e Newton Cruz, que souberam antes do que estava para acontecer, queriam abafar o caso. O general Golbery discordava.
Em meio ao impasse palaciano, o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, aliado de Golbery, apostou que ele sairia vitorioso. “A bomba explodiu dentro do governo”, declarou.
Afinado com seus parceiros do SNI, Figueiredo bancou a farsa. Meses depois, Golbery deixou o governo.
Foi um divisor de águas. A partir daí, Figueiredo começou o processo que o transformou em um zumbi no final de seu governo.
A hipótese que prevalece é que Figueiredo, como disse o general Otávio Medeiros em um depoimento, teria sido informado de que poderia ocorrer o atentado. E nada fez.
O memorando da CIA põe outra hipótese no tabuleiro. Se Figueiredo exerceu o poder que lhe foi conferido por Geisel, de decidir quem seria ou não sumariamente executado nos porões do Exército, certamente teria rabo preso com os avalistas do atentado no Riocentro.
Quem sabe outros documentos secretos da CIA possam esclarecer isso.
A conferir.