A Constituição do Brasil, como em outros países civilizados, atribui às CPIs uma função vital para a democracia — em um sistema que prevê alternância no poder, é talvez o principal instrumento de fiscalização de eventuais maiorias por circunstanciais minorias.
Ganharam fama no Brasil pelo sucesso de algumas investigações históricas — a do PC Farias que resultou no impeachment do presidente Fernando Collor; Anões do Orçamento que revelou a roubalheira parlamentar de dinheiro público; a dos Correios que escancarou o Mensalão no governo Lula; e poucas outras com êxito. Muitas foram criadas ou descambaram para achaques a governos, empresários ou a quem quer que seja.
Por causa dessa prática, investigada em inquéritos da Lava Jato, alguns figurões da política, lobistas e empresários picaretas passaram uma temporada na cadeia. O ex-senador Gim Argello, que se achava o rei da esperteza a ponto de comemorar o primeiro bilhão arrecadado, e o ex-deputado Eduardo Cunha, que dispensa apresentações, são símbolos da ascensão e queda das safadezas que levaram as CPIs ao descrédito.
Mas a caixinha da História sempre surpreende. No momento de vitória dos caciques políticos de todos os naipes, com o aval da maioria do STF, sobre a Lava Jato, que foi recebida como a volta do liberou geral e da impunidade de sempre, surgiu com força o que parecia inusitado — uma investigação parlamentar sobre corrupção que promete resultados.
Desde seu nascedouro, a CPI da Pandemia — hoje com mais de meio milhão de motivos para ser criada–, parecia fadada ao fracasso. Assim também nasceram outras CPIS históricas. Quem diria, por exemplo, que o deputado Benito Gama e o senador Amir Lando, escalados para o comando de uma CPI que não daria em nada, entrassem para a história por estarem à frente da investigação que levou ao primeiro impeachment de um presidente da República no Brasil. E não era apenas mais um, simplesmente o primeiro eleito após décadas da ditadura militar.
A antiga máxima, consagrada pelo doutor em democracia Ulysses Guimarães, de que a gente sabe como uma CPI começa e não como termina, é apenas o mais visível diagnóstico. A política, sempre ela, dá a palavra final. Sem qualquer juízo de valor, Collor caiu, anões do Orçamento caíram em um processo algo seletivo, José Dirceu dançou mas Lula sobreviveu ao Mensalão.
A CPI da Pandemia resgata a capacidade de investigação de outras poucas que fizeram história. Surpreende, por exemplo, a quem acompanha o dia a dia do Senado, a serenidade e a firmeza da condução da comissão pelo presidente Omar Aziz. O vice Randolfe Rodrigues consegue melhorar o bom padrão de qualidade exibido durante seu mandato. Renan Calheiros aproveita a oportunidade para resgatar seu protagonismo no Senado. Eles navegam em um mar favorável.
Com toda essa maré desfavorável, o Palácio do Planalto reagiu pior que o mais despreparado marinheiro em sua primeira viagem. Escalou os bestalhões Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, e o coronel Élcio Franco, que a exemplo de seu chefe general Pazuello, vive uma espécie de asilo no Palácio do Planalto. Em nome de Bolsonaro, com ameaças descabidas, erraram tanto no tom que foram escanteados do jogo pelo próprio Planalto.
Mas deixaram rastros e pistas. A senadora Simone Tebet, uma estrela em ascensão na política brasileira, desmontou o pouco que ainda restava desse castelinho palaciano de areia. Ela desmascarou a narrativa montada pelo Planalto de que o único documento que até agora se sustenta como verdadeiro era uma fraude. E que nessa atrapalhada tentativa a de virar o jogo, Onyx e Elcio Franco exibiram um mal escrito papel, com erros grotescos, tipo price virar prince, que tramitou a jato no Ministério da Saúde. Onyx pôs a viola no saco e saiu de cena.
O coronel Élcio Franco segue um fantasma na apuração da CPI sobre negociação de vacinas e atuação de funcionários do Ministério da Saúde. O que mais surpreende em todo esse imbróglio não foi a conduta até aqui exemplar do servidor Luís Ricardo Miranda, que brecou uma milionária mutreta. Foi a omissão de alguns de seus colegas, igualmente concursados.
Quem se orgulhou de Luís Ricardo, teve vergonha do depoimento da servidora pública Regina Célia Oliveira, que também entrou por concurso no Ministério da Saúde, foi escalada como fiscal de bilionários contratos de compra de vacinas, inclusive da tal Covaxin, e pagou mico na CPI. Quem assistiu seu depoimento inteiro ficou assustado com o desleixo de quem deveria cuidar de cada de tostão arrecadado de quem paga seu salário.
De todas as irregularidades que ela tinha atribuição legal de fiscalizar, que passaram por seu computador e mesa de trabalho, Regina Célia teve a cara de pau de reconhecer que viu uma penca de irregularidades no caso da Covaxin mas que não competia a ela dar um alerta. Alegou que, mesmo sendo a fiscal de todo o contrato, sua única tarefa era controlar se a quantidade de vacinas contratadas eram efetivamente entregues.
Pois bem. Justamente nesse quesito, segundo ela sem consultar ninguém, aceitou o pedido de redução de um milhão de doses do previsto em contrato para a compra das vacinas da Covaxin — sempre elas. Pior, ela deixou mal todos os órgãos de controle do Ministério da Saúde, e passou a impressão de que, propositalmente ou não, eles facilitam a corrupção no maior orçamento da Esplanada dos Ministérios. Em si só, isso merece um profunda investigação à parte.
A constatação de que a corrupção vem de longe no Ministério da Saúde, em vez de aliviar para Bolsonaro, é um complicador. O presidente e até as emas do Palácio da Alvorada sabem dos rolos no Ministério da Saúde. Mal os irmãos Miranda começaram a descrever o que consideravam uma denúncia inédita, Bolsonaro demonstrou saber todo o enredo. Teve até chances de desmontá-lo há tempos, mas por covardia ou interesse, deixou por isso mesmo.
Que o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, é um controvertido personagem nesse e em outros rolos na Saúde, é do conhecimento geral em Brasília. O que ainda não está claro é a até aonde vai a relação do senador Flavio Bolsonaro com o empresário Francisco Maximiano, o Max, dono da Precisa Medicamentos e outras empresas envolvidas nesses escândalos, a quem abriu as portas do BNDES.
Por mais que se olhe esse jogo por um lado ou pelo outro, o presidente Bolsonaro segue no meio da confusão, cada vez mais cercado. Qual será o desfecho?
A conferir.