A questão nem é o direito de o presidente da República, em plena pandemia do novo coronavírus, mostrar ou não seus testes médicos sobre o covid-19. O problema é se por sua rebeldia contra a orientação das autoridades sanitárias do mundo inteiro, expondo-se ao contágio e a outréns em aglomerações, Jair Bolsonaro corra risco zero, por já ter adquirido anticorpos. É a estreita diferença entre a leviandade e o crime, ambos condenáveis em um presidente da República.
Mas é apenas mais uma contradição de quem sempre defendeu às claras posições e bandeiras polêmicas, como a defesa da ditadura e da tortura aos presos políticos, mas sempre se atribuiu qualidades como a transparência e o combate à corrupção — o estelionato eleitoral da vez.
A pretexto de golpes imaginários, Bolsonaro foi às compras no balcão político de sempre. Alega que sua gestão é torpedeada pelos outros poderes da República. Delírio ou mentira. Raras vezes um inquilino no Palácio do Planalto recebeu tantos rapapés de presidentes de outros poderes, como Dias Toffoli, Davi Alcolumbre e até do seu desafeto predileto Rodrigo Maia. Atira em moinhos de vento e assim tenta justificar os negócios com o Centrão.
Não é por acaso que o Departamento Nacional de Obras contra a Seca foi a primeira prenda entregue. É, ou deveria ser, uma das linhas de frente do Estado no combate às tragédias climáticas nos sertões. Mas segue a sina de ser moeda de troca por votos de cabresto. Nenhuma surpresa em fazer parte de um pacote com empresas como a Codevasf e o Banco Nordeste, feudos em permanente disputa pelos coronéis políticos nordestinos.
Parece muito, mas tudo isso vem sendo tratado como entrada no banquete do Centrão. A turma, liderada por Ciro Nogueira e Arthur Lira, está de olho em butins bem maiores. Só um deles, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, gere bilhões e bilhões de reais. A ambição maior é por um naco no Ministério da Saúde que tenha algum poder de decisão nas compras emergenciais liberadas do teto constitucional de gastos para enfrentar a pandemia do novo coronavírus.
O pano de fundo dessa guinada nas promessas eleitorais — infelizmente corriqueiras na política — é o medo de alguma investigação comprovar ilegalidades ou até falcatruas cometidas pelo clã Bolsonaro. É esse temor que baliza seu comportamento errático desde que caiu na rede da Justiça o consórcio entre seu filho Flávio Bolsonaro e o sumido Fabrício Queiroz. Sua opção de resolver em Brasília imbróglios como a Rachadinha e as ligações familiares com as milícias do Rio de Janeiro não deu certo.
A desconfiança, com ou sem motivo, de que o governador Wilson Witzel estava usando a polícia estadual para tirar seu tapete elevou a temperatura de sua paranoia. Em total desvio de finalidade, pensou em um contra-ataque com a Polícia Federal, uma instituição do Estado com a função inclusive de Polícia Judiciária. Bateu de frente com o comando da PF e as seguidas superintendências no Rio de Janeiro, que sempre tiveram respaldo do então ministro Sérgio Moro.
Na sua distorcida ótica, desde então vinha engolindo sapo de um ministro que não foi eleito e se achava com poder de veto às suas decisões. Depois de demitir seu popular ministro da Saúde, o que só teve coragem de fazer depois de desafiado por Henrique Mandetta em entrevista ao Fantástico, ele se sentiu à vontade para impor suas vontades. Deu um ultimato em Moro na badalada reunião ministerial do dia 22 de abril. Sabia que ele não iria capitular. Só não esperava seu fulminante contra-ataque, que inclusive melou seus planos imediatos para capturar a Polícia Federal. Por enquanto, a PF continua blindada no Rio.
Pior do que esse fiasco, foi se expor a uma investigação, sob a batuta do decano do STF Celso de Mello, que abre caminhos para abreviar seu mandato. Seu maior momento de “bravura” em seu colegiado de ministros, secundado e aplaudido por puxa-sacos como Abraham Weintraub, pode lhe custar caro. Ameaças, bravatas e xingamentos, gravados em vídeo, estão nas mãos da Justiça. Deixam o presidente nu.
Mesmo sob todos esses riscos de não concluir o mandato — o mais provável é que siga se esvaindo até o ponto de sequer tentar a reeleição — Bolsonaro tenta manter a pose. Nesse domingo, em seu show diário em frente ao Palácio do Alvorada, resolveu ignorar o cercadinho reservado à imprensa para dar atenção exclusiva ao cercadinho de seus fanáticos apoiadores. Justamente dali surgiu uma voz inesperada: “A democracia pede sua renúncia ou impeachment”. Reagiu com mais uma bravata. “Vou sair em primeiro de janeiro de 2027”.
Blefe, fantasia ou delírio.
A conferir.