Com todos seus defeitos, a Constituinte de 1988 certamente foi o período institucional de maior efervescência democrática no país. Ali, após mais de 20 anos de ditadura militar, o Brasil foi redesenhado. Foi o resgate da cidadania, e vanguarda em questões como meio ambiente. A balança entre direitos e deveres econômicos e sociais, que nasceu questionada pela virada histórica da queda do muro de Berlim, continua motivando embates e alterações pontuais — a mais recente é a reforma da Previdência. Sua atualização, para melhor ou pior, é do jogo aqui e em qualquer lugar do mundo.
O que faz de nossa Constituição a mais duradoura e democrática na história republicana tem sido a eficiência das travas contra o autoritarismo de qualquer um dos poderes. É assim que, aos trancos e barrancos, as instituições vem sobrevivendo aos naufrágios dos próprios chefes de poderes — impeachment de 2 presidentes da Repúblicas, cassação de presidente da Câmara dos Deputados, presidente do Senado salvo pelo gongo, e do STF na mira de senadores.
Nas ruas, nas pesquisas, nas urnas, alguns recados e exigências populares — por mais divergências sobre quem sejam os alvos –, são, por incrível que pareça, consensuais. Mesmo que troquem sopapos, em especial no ringue das redes sociais, todos pedem justiça. Desde os que estão satisfeitos com Lula na cadeia, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, aos que defendem substituí-lo na cela pelo ministro Sérgio Moro, autor da sentença contra Lula, confirmada por instâncias superiores da Justiça.
Só que esses conflitos estão cada vez mais acirrados. O STF tem se virado nos trinta para dar conta do recado. Virou rotina um corrigir o erro do outro. Quando não tem jeito — como a pedalada na Constituição, patrocinada por seu presidente Ricardo Lewandowski, para manter os direitos políticos de Dilma Rousseff após seu impeachment — o Supremo fingiu que não viu. A envergonhada justificativa nesse caso foi que o tribunal agasalhou uma solução política de outro poder. Até aí o problema original estava do outro lado da rua.
Nesse e em outros casos, a arbitragem do STF, mesmo quando questionada, virou solução. Em cada uma dessas opções, o embate interno aumentou o desgaste entre os ministros. O que já era ruim ficou pior com as notícias de que os rendimentos das advogadas Roberta Rangel, mulher do atual presidente Dias Toffoli, e Guiomar Mendes, mulher de Gilmar Mendes, estariam sendo investigados pela Receita Federal. Guiomar e Roberta já haviam sido alvos de outras reportagens com acusações mais explícitas.
Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que inspiravam uma rebelião parlamentar contra uma suposta tentativa de Sérgio Moro e da Lava Jato de dominarem a república, resolveram agir por conta própria. Inventaram um inquérito em que o STF apura, denúncia e julga, uma canelada sem precedentes no ordenamento jurídico do país em períodos democráticos. Escalaram para a tarefa o ministro Alexandre de Moraes, um jurista com alma de policial, apelidado de Robocop por seus colegas no ministério de Michel Temer. Ele estreou atropelando a Constituição ao mandar censurar dois sites jornalísticos. Recuou depois de uma bordoada do ministro Celso de Mello, o decano do STF.
O que se esperava no Supremo é que depois de tantas canetadas surpresas — como Toffoli mandar interromper até meros procedimentos investigativos com base em relatórios do Coaf, Receita Federal e Banco Central — o plenário decidisse que rumo tomar.
Novos diálogos divulgados pela Folha de S Paulo que se referiam a Toffoli e Gilmar, no tal material captado pelos hackers, mereciam, segundo os citados, uma forte reação do STF. Coube ao vice-presidente Luiz Fux cumprir esse papel até porque ele era o relator de um pedido do PDT para evitar a destruição do material hackeado, intenção atribuída a Moro. Fux seguiu a lei e fez o combinado. Gilmar e Toffoli acharam pouco.
A pedido deles, Alexandre de Moraes voltou à cena, repetiu a mesma requisição de Fux, mandou afastar dois auditores fiscais e suspender a investigação da Receita Federal sobre 133 contribuintes da Receita Federal, entre os quais Gilmar Mendes e a advogada Roberta Rangel. Os investigadores reagiram. A Associação Nacional dos Procuradores da República e o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais protestaram. Pediram ao STF para revogar essas medidas.
Raquel Dodge, procuradora-geral da República, meteu o dedo na ferida. Ao usurparem competências constitucionais alheias, como as do Ministério Público, Toffolli e Alexandre de Moraes criaram um “tribunal de exceção” no STF. Simples assim. Gilmar Mendes, mentor do tal inquérito, tenta se justificar: “A corregedoria do MP praticamente não funciona. Estamos a falar de uma questão que, em termos republicanos, é muito séria. Quem vigia o guarda neste caso? Os mal-feitos pelos procuradores são investigados por quem? Essa é uma questão que precisa ser respondida. É preciso que haja investigação”.
Toda essa ginástica verbal não justifica porque um ou mais ministros do STF, com funções constitucionais explícitas, podem se meter em causa própria no trabalho de servidores do Ministério Público, Banco Central, Coaf, Receita Federal que também atuam sob mandato constitucional. Ministros do STF e seus parentes, em suas atividades privadas e negócios, não têm mandato de impunidade.
Se estão sendo coagidos, ou ilegalmente investigados, recorram aos mecanismos legais. Se eles não confiam nesses mecanismos legais, prescritos por Leis e Constituição, dos guais eles são guardiões, quem pode confiar? Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo, costuma dizer que acima do STF só Deus.
A conferir.