Os políticos dos mais diferentes naipes querem resgatar o acesso ao velho e bom passaporte da impunidade, uma das benesses seculares do andar de cima no Brasil. Por mais incrível que pareça, esse é o tema que mais une parlamentares das bandas mais diferentes como petistas, bolsonaristas e muitos outros.
Na noite dessa quarta-feira (16), com o acachapante placar de 408 votos contra apenas 68, e uma abstenção, a Câmara dos Deputados aprovou o relatório do deputado Carlos Zarattini (PT-SP) que “flexibiliza” a Lei sobre a Improbidade Administrativa. Em meio a escândalos, essa lei foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente Fernando Collor acuado por um processo de impeachment. Já ouvi de bons e honestos gestores que seu amplo leque de aplicação engessaram suas administrações.
Seus exageros, portanto, precisavam de correção. Na avaliação de quem entende do riscado, o texto da lei é muito genérico sobre as situações que podem configurar improbidade, deixando margem para a punição de decisões equivocadas e erros administrativos. Havia um projeto na prateleira de uma comissão especial da Câmara para uma revisão. O mais adequado seria abrir uma ampla discussão sobre que mudanças seriam razoáveis.
Mas com um estalar de dedos, Arthur Lira, presidente da Câmara e alvo de processos por improbidade administrativa, teve o aval de seus colegas — muitos igualmente em causa própria — para pautar direto no plenário uma ampla mudança nessa lei que deu instrumentos para um mínimo de combate à corrupção em milhares de administrações públicas Brasil afora.
O argumento para essa pressa é que a lei precisava ser atualizada, pois ao pé da letra permitia inclusive a punição de bons gestores. O relator Carlos Zarattini diz ter acatado críticas a seu primeiro relatório. Por exemplo, revogou o liberou geral para o nepotismo, para não bater de frente com a súmula 13 do Supremo Tribunal Federal. Mas manteve uma pegadinha em um de seus parágrafos para evitar punição a quem burlar essa proibição: “não se configurará improbidade a mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandatos eletivos, sendo necessária a aferição de dolo com finalidade ilícita por parte do agente”.
Tira com uma mão e repõe com a outra. Mas isso é apenas mais um jabuti. Há coisas mais graves. Por exemplo, hoje vale para algum gestor ser denunciado para qualquer gesto que deliberadamente cause prejuízos à administração e aos cofres públicos. O pulo do gato no parecer de Zarattini é a exigência da comprovação de intenção de lesar a administração pública para que a acusação formalizada pelo ministério público seja recebida pela justiça. A diferença pode até parecer detalhe, mas na pena de um advogado faz toda a diferença.
Mas há mais bois passando nesse contrabando. Pela atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a condenação por improbidade administrativa vale para demitir ou punir em qualquer esfera pública. Por exemplo, se um deputado ou senador for condenado por ter desviado quando era prefeito milhões de reais, ele hoje perde o mandato. Pelo projeto aprovado pela Câmara, ele só será punido se continuar no mesmo cargo em que cometeu a falcatrua.
São muitas brechas abertas por esse projeto, como as mudanças nos bloqueios de bens, sempre favoráveis aos infratores. Mesmo com a atual legislação e jurisprudência do STJ, correr atrás e bloquear bens de criminosos é uma tarefa muito difícil. Mas o projeto aprovado pela Câmara cria novos obstáculos nessa corrida. Passa a exigir comprovação de urgência e de outras provas para autorizar a medida.
Restringe também quem pode entrar em juízo contra a roubalheira de dinheiro público. Nada menos que a Advocacia Geral da União é barrada do baile. Fica impedida de ajuizar ações de improbidade quando o erário público for lesado. É muito jabuti para um projeto só.
E vai muito além do que em tese se propõe, modernizar a legislação. Mete o bedelho, por exemplo, na Lei de Acesso à Informação, uma bela conquista democrática. Pela atual legislação, negar acesso a informações públicas é crime de improbidade. A pérola no relatório aprovado de Zarattini é torná-la letra morta. Deixa de valer “em razão de sua imprescindibilidade para a segurança do Estado e da sociedade, ou em outras hipóteses instituídas em leis”.
Toda vez que o petismo e o bolsonarismo se unem perde o país. Tomara que o Senado corrija esses retrocessos no combate à corrupção.
A conferir.