Aparentemente, era alguma coisa do tipo ‘parte das tantas coisas que os pacotes de relações públicas oferecem aos jornalistas, sobretudo quando há esforço diplomático para favorecer o diálogo para além do que as equipes diplomáticas combinam entre si’.
O comum é quando de eventos bilaterais significativos os jornalistas terem de ficar se livrando das jujubas, não perdendo com amenidades o precioso tempo para ir atrás do que ninguém quer revelar e até se esforçam para que nada vaze. Por vezes, até mantêm a imprensa entretida com algo de importância política e econômica para que o essencial em matéria de notícia fique escondido, inerte, dormindo num cantinho até que chegue o dia, em ocasião futura, de, finalmente, ‘estar maturado para divulgação’.
Mas, sobrara tempo para outras preocupações, a perda de poder aquisitivo na reversão de uma moeda para outra, por exemplo, e até dar uma olhada no que poderia render ‘matéria fria’, os editores vivem pedindo isto: ‘Veja se também descola algo para as edições de fim de semana’. Em geral, o que um chefe faculta já é uma ordem, mesmo quando nos recomendam coisas do tipo: aproveite a viagem não somente para trabalhar, mas também para curtir alguma coisa por aí. Tradução: faça isto, mas não se atrase para as pautas que já estão lhe esperando.
Então, fui. E fui um dos poucos repórteres atender a um quase estranho convite: conhecer em Lagos, capital da Nigéria, “…uma anciã que sabe falar português, sem nunca ter ido ao Brasil”. Fui. E foi bem interessante, embora aquela senhora falasse um português que exigia muito da interlocução para ser compreendida. Era um misto de português arcaico, com inglês nigeriano (incluindo no sotaque adaptações face a dificuldades de pronúncia) e ainda umas inserções pelo meio da conversa de termos e conceitos iorubas.
O tempo magoou minha memória, mas não em tudo. Isto ocorreu de forma seletiva. Vivo, neste recolhimento para fugir da pandemia, uma demanda por lembranças, talvez, desconfio, das coisas que, à época, eu me cobrei por não ter dado mais atenção, embora eu mesmo tente me perdoar, com justificativas tais como: você tinha de cuidar do principal, não podia dar conta de tudo. E o que era o principal naquele momento [1983]? O principal era saber se, de fato, o presidente brasileiro conversara com o seu confrade africano sobre a possibilidade de a brasileira Nuclebras ajudar à Nigéria nas suas pretensões em se alfabetizar no campo da energia atômica, triangulando algum dividendo do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha. Em troca, a Nigéria aliviaria as condições no fornecimento de petróleo.
Naquela ‘viagem’, porém, o essencial acabou sendo uma única frase do normalmente mal humorado presidente brasileiro, imagine-o numa ocasião em que o país passava por um turbilhão de expectativas, a ditadura já enfraquecida e o clamor por eleições diretas tomando proporções inebriantes para a população e estressantes para um regime militar arrumando as malas. E foi num desses corre-corres, entre um e outro compromisso protocolar, que um alguém abordou o “mandatário”: “Presidente, há estimativas de que o comício da Candelária pelas Diretas-já venha reunir um milhão de pessoas”… Ao que ele interrompeu no estilo que lhe era próprio, sincero e ríspido: “Se eu estivesse lá, seria um milhão e um”. Foi a manchete do dia seguinte em todos os jornais brasileiros. Energia atômica, petróleo, velha nigeriana falando português… Poucas chances ou nenhum espaço para estes outros apelos.
Homenageio, nesta simplória crônica algo que me inquietou, ficou esquecido, mas foi um dos estilhados de brilho colorido a me pedir catarse entre tantas lembranças. Crises políticas e econômicas vêm e se sucedem, mas, as pessoas significativas permanecem na memória, ou, como na escrita Drummond: “Mas as coisas findas, / muito mais que lindas, / estas ficarão”. Findo, afirmando o que tornava aquela senhora algo singular. E a singularidade é, segundo Adelmo Genro Filho, importante teórico do Jornalismo, o âmago do valor-notícia, ou seja, da lógica que faz com que algo seja selecionado para entrar na hierarquia dos assuntos a merecer espaço noticioso.
– Esta língua foi-me ensinada pela minha mãe, porque ela gostava muito de se lembrar do Brasil – revelou a anciã nigeriana, filha de escravos.
— Luiz Martins da Silva é jornalista, professor da Universidade de Brasília, escritor e poeta