Só pode ter sido um mal entendido: ao dizer que não pode obrigar ninguém a se vacinar, o presidente Jair Bolsonaro estaria botando as barbas de molho, lembrando que vacina obrigatória já deu até guerra no Brasil. É provável que ele tenha levado ao pé da letra uma referência histórica. Os tempos são outros, mas, quando se falou do assunto, alguém pode ter mencionado aqueles acontecimentos e o chefe do governo o tratou de tirar seu cavalinho da chuva: “vacina obrigatória não”, teria dito. E o assunto chegou à mídia queimando como mais um disparate da pandemia do Covid 19.
Para lembrar: em 31 de outubro de 1904 o Congresso Nacional aprovou uma lei tornando obrigatória a vacinação da população. O Rio de Janeiro era assolado simultaneamente por epidemias de varíola, febre amarela e peste bubônica, além de endemias de tuberculose e sífilis. Covid 19 é pinto. Então as autoridades decidiram acabar com aquilo, como ocorrera em outras capitais da Europa, Argentina e Estados Unidos. Como se faz até hoje no Brasil, votou-se uma lei declarando as epidemias ilegais.
A legislação previa não apenas a vacinação em si, mas criava a necessidade de apresentação de documento comprobatório, um atestado de vacina, para, nada menos que, matrícula em escolas e faculdades, registro de emprego, viagens nacionais e internacionais, hospedagem em hotéis, casamento e, ainda por cima, multas para os recalcitrantes (tal como os sem máscaras de hoje).
A oposição abriu a boca, aproveitando para baixar a lenha no governo. Mais ou menos como em nossos dias. Resultado: em 10 de novembro iniciou-se um levante, com barricadas e trincheiras, tiros e mortes. No final o presidente da República, Rodrigues Alves, em 16 do mesmo mês, depois de uma semana de caos, vetou e depois revogou a lei da Vacina Obrigatória, levando, de volta, às ruas da capital federal, a pacificação. Resultado: 500 presos, 410 deportados para colônias penais no Acre, 30 mortos e 110 feridos.
Provavelmente seria disso que o presidente Bolsonaro estaria querendo escapar, quando disse que não iria obrigar ninguém a se vacinar. Atualmente há uma lei em vigor tornando a vacina obrigatória, no caso da Covid 19, aprovada no Congresso em fevereiro deste ano e já sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Pode ter acendido uma luz de alerta quando lembraram as agruras de seu antecessor e conterrâneo paulista no início do século passado.
No Palácio do Planalto ninguém comenta a gafe presidencial, mas alguns observadores sugerem que, a titulo de piada ou de ilustração, algum assessor possa ter comentado aquele fato insólito, talvez o vice-presidente Hamilton Mourão, que é erudito em História do Brasil. Aí o chefe do governo entendeu mal e, uma vez mais, dá-se por dito por não dito.
Daí que a frase solta que está estarrecendo o mundo, com um chefe de governo pregando contra a imunização para deter a marcha implacável do coronavírus. Ele poderia estar se referindo aos acontecimentos trágicos no século passado.
A crise envolveu algumas figuras emblemáticas da história sanitária do Brasil: o diretor de Saúde Pública (nome que hoje seria de ministro da Saúde), o médico Oswaldo Cruz, reconhecido mundialmente, símbolo e patrono do Instituto mais afamado na área imunológica do País. E o engenheiro Pereira Passos, o prefeito do Distrito Federal (1903/1906), que eliminou da paisagem carioca os cortiços insalubres, modernizando a cidade dentro de um critério de higienização, como se dizia na época. Os dois sábios, amparados na ciência, tomaram medidas drásticas, sem muita sensibilidade política. Burocratas.
Naqueles tempos, embora as guerras ainda usassem armas brancas, como baionetas e espadas, mesmo os soldados mais valentes temiam como o demônio uma agulha de injeção. Foi o que bastou. Ricos e pobres foram para as ruas em quebra-quebras e tiroteios. O Exército levou dias pra repor a ordem pública. O governo quase caiu. Revogada a lei, os ânimos foram esfriando, a vacinação implantada sem leis draconianas e o centro do Rio de Janeiro virou uma cópia tropical da Paris do prefeito Georges-Eugène Haussmann. Desses tempos ainda estão lá na avenida Rio Branco os prédios suntuosos do Teatro Municipal, da Biblioteca Nacional e do Museu de Belas Artes.