A esta menina e a todas as mulheres

Indignada com a barbárie sofrida pela menina de 10 anos, do Espírito Santo, seviciada pelo tio durante quatro anos, a cronista clama pelo direito das mulheres viverem numa nação civilizada, onde direitos fundamentais e universais sejam respeitados. "País de hipócritas, de desiguais, de opressores"

Não é porque já é lei no Brasil, nem porque sou advogada que hoje escrevo este texto. Desde 1940, portanto há oitenta anos, nosso Código Penal  deixa de criminalizar o aborto quando a mulher foi estuprada ou quando ela corre perigo de vida. Mais ainda quando as duas hipóteses se somam. Parece até um milagre que o legislador neste país, há tanto tempo, tenha aberto essas duas exceções: digo isso porque, como mulher, tenho acompanhado por toda minha vida a grande chaga que atormenta muitas de nós.

Conceber uma criança pode ser uma bênção ou um tormento, dentre os muitos que a vida nos impõe no caminho. Sobretudo, no caminho das que já vêm ao mundo com a marca de uma das muitas opressões que podem afligir ainda mais o simples ato de estar vivo. Se alguém nasce num lugar onde o normal é ser branco, onde o normal é ser heterossexual, onde, no máximo, esse alguém não é pobre ou, se nasce homem, e não mulher – aí, sim, terá a seu lado, em seu benefício, tudo que o perdoa. Tudo que releva seu jeito de ser, tudo que não é pecado. Estará a seu lado tudo que a lei deva proteger e nenhuma crença — seja ela fruto da religião, da ignorância, ou da ideologia — jamais será contra esse alguém!

Contra uma menina, brasileira, de apenas 10 anos de idade, tudo: todos os tipos mais terríveis de humilhação, de exposição pública, de rejeição foram brandidos noite e dia em todos os meios de comunicação. Todo mundo, todo mundo mesmo, falou do caso dessa menina. Uma entre tantas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada hora, no Brasil, quatro meninas menores de treze anos de idade são estupradas.

Por que tanta falta de empatia com uma menina de apenas dez anos? Vítima de um crime continuado. Desde os seis anos de idade era permanentemente violada por um tio. Como sói acontecer às pencas, o facínora mora ao lado, na maioria das vezes mora dentro da própria casa!

Congresso Nacional, junho de 2018: manifestação contra o aborto na Comissão de Seguridade Social da Câmara – Foto: Orlando Brito

A menina ficou grávida e ainda foi preciso que um juiz certificasse a excludente de punibilidade. Um juiz concedeu a ela – isso mesmo, concedeu a ela — a obviedade legal: o direito de fazer o aborto. Bendito juiz! Mas médicos da cidade onde ela morava não aceitaram fazer o aborto. Benditos sejam todos eles! – dirão alguns tresloucados. Outros médicos, a mais de mil quilômetros de distância, acolheram-na. Mas os tormentos a seguirão vida afora: nova identidade, novo lugar para se esconder nesse mundo povoado de bárbaros fanáticos. Benditos sejam esse hospital e esses outros médicos! Benditos sejam o novo nome, a nova cidade, as novas pessoas que vão amparar essa nova menina!

Não é por caridade, nem por compaixão, nem por sentimento algum que seja, que hoje escrevo este texto. Faço-o porque já vivi o suficiente para saber que mais uma menina foi estuprada no Brasil e que contra ela muitos vão se levantar. E ela mal sabendo quem é ou quem foi, jamais saberá o que leva um tio, um pai, um irmão, um padrasto, um amigo da família a se encher da glória de ter o direito de satisfazer sua cupidez, seu desejo, sua volúpia de qualquer maneira. Como bestas, em qualquer buraco que lhe possa surgir na frente. É que neste país de hipócritas, de desiguais, de opressores (mesmo entre os oprimidos), qualquer macho pode satisfazer-se mesmo que às custas de ofender e humilhar.

Uma humilhada que poderia ser eu mesma. Uma das minhas filhas, das minhas netas ou das minhas sobrinhas, como Mariana, hoje, ela também tão indignada quanto eu. Poderia ter sido minha mãe. Minha sogra. Minhas amigas. Todas as mulheres.

Que podia ser qualquer uma dessas muitas mulheres que vivem ou já viveram. Que poderá ser qualquer mulher que ainda venha a viver.

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