De casa em casa, no tabuleiro dos oportunismos, a versão pós-moderna de Macunaíma, o herói sem caráter, chega a sua versão genética 4G, esbanjando esperteza de fazer inveja às mais veteranas raposas. Nem mesmo ACM, uma das mais habilidosas e ardilosas, chegou lá, a Presidência da República. O raposão do momento deixou todos os outros na poeira. Mais ladino está por surgir, pois não basta o pódio. Manter-se nele requer outra noção, a de um equilibrismo que não socorreu nem a Jânio nem a Collor, dois dos grandes apelos populistas nas urnas.
O problema, no entanto, para um país e para o seu povo, é o preço do atraso e do retrocesso por eleger políticos que, uma vez eleitos, mais do que se descolam dos compromissos de campanha, passam a fazer tudo ao contrário. E com que astúcia, o vitorioso do momento descobre nesse paroxismo um novo componente para a fórmula do sucesso. Descobre-se que a perversão dos propósitos outrora enunciados rende popularidade. É o que demonstra a última pesquisa de opinião. Prometer e não cumprir já era lugar comum no dar de ombros para a retórica dos palanques. Mas, o perjúrio de trair os mais sacramentados juramentos, que ousadia! Pode ser, no entanto, que sacrilégio maior esteja por se provar: jurar à Constituição e descumpri-la, rude costume.
De manhã, o Chefe do Executivo aparece ao lado dos seus pares no Legislativo, devidamente com suas máscaras, renovando publicamente os juramentos de que são cumpridores da leis. Na pauta, o tema que está no topo, o teto dos gastos. Anoitece, e o mesmo Chefe da Nação volta uma casa no jogo da política e desdenha, mais uma vez, com um dos seus cacoetes idiomáticos: “E daí?”. E daí, qual o problema de o teto dos gastos estar sendo debatido? Ora, é o mesmo que dizer: às favas com a lógica legal, de que lei não se discute, se cumpre. Fora com o milenar provérbio romano, Dura lex sed lex (A lei é dura, mas se impõe). Sai este e entra outro: a lei existe para se ajustar à ocasião. Ou, numa acepção que virou mantra, aproveitam-se as distrações para se tocar a vida, ou melhor, a boiada.
E daí? E daí que, se era próprio das raposas e dos camaleões ajeitar a pele de acordo com as circunstâncias, o cinismo é a mais nova jogada para que pauzinhos da popularidade se mexam a favor, mesmo em meio a atmosferas adversas: pandemia, crise econômica, debandada de quadros técnicos… E, mais uma vez, recorre-se às condições, mesmo contraditórios, de assegurar a famigerada governabilidade, esta, sob a égide de uma cultura que vem de séculos, mas que encontrou um gestor histórico por excelência, este que atende pelo nome de Centrão, historicamente datado, um bloco que surgiu do lobismo que marcou a última Assembleia Nacional Constituinte, mas que, governo a governo, passou a dar as cartas e em momentos oportunos, como este. Fechado um ciclo um jogo eleitoral e outro já se reabre.
Mistérios da política. Sortilégios de uma ciência caprichosamente inexata, mas, agora, se vê, resvalou tanto para o absurdo como a loucura que desalinhou os mais confiáveis postulados da virologia, bagunça extrapolada na sua 19ª edição. Talvez por isto, este governo sintomaticamente zomba da ciência, pois ela própria não tem nenhuma certeza sobre como um certo ponto fugiu da curva: porquê um coronavírus, modalidade conhecida desde a década de 40, passou a fazer tanto estrago e não elucida sequer a polêmica em torno de morcegos e pangolins como vetores de mutação. No Brasil, mutatis mutandis, a Presidência da República deixou de ser o principal vetor de organização do poder.
O tempo passa, o tempo voa, e o Centrão continua numa boa. E ainda desbancando os postulados da Sociologia e da Ciência Política. Convenhamos, desvendar os mecanismos do poder nunca foi fácil. Poder, numa compreensão que remonta a um dos mais robustos pilares da Sociologia, Max Weber, é a capacidade de se fazer obedecer, a despeito da vontade de quem obedece.
Na conjuntura brasileira, o grande cientista social alemão foi destituído por um suposto filósofo-rasputin, típico desse microcazrismo que é a família Bolsonaro e os assessores, mentores e pastores que a cercam. Já o francês Maurice Duverger parece mais adequado ao entendimento das manhas e artimanhas da política brasileira. Ele achava simplesmente irônico como o poder pouco se entrega aos que mais lutam por chegar até ele e como, frequentemente, se deixa seduzir por quem não teria os petrechos para o conquistar.
Quem, há três décadas, além de saber da existência de um clã chamado Bolsonaro, saberia que, além de predestinado, ele acumularia progressivamente carisma para ultrapassar os limites de um condomínio na Barra da Tijuca e despontar como um fenômeno capaz de bater Tiririca em termos de popularidade e protesto? Golpe de Mestre não é apenas o nome de um clássico do cinema com uma musiquinha-chiclete agradável. É um segredinho lá entre eles, de filhos para pai, como alcançar a pole position em corridas eleitorais e ainda esnobar e até ameaçar um poder supremo, pelo menos no nome, o STF. O “Vou intervir!”, sabe-se, agora (graças à revista Piauí), não era somente nos escalões de obediência devida, mas afronta às mais altas cátedras de guardiões da Constituição Federal. Juras e juramentos, constitucionais e republicanos, parecem pesar menos do que o apelo de seguidores fanáticos com faixas pedindo, exatamente, intervenções, a começar pela intervenção militar “com Bolsonaro”.
A Ciência Política sempre se espichou para dar conta de entender as circunstâncias com que as repúblicas equilibram dois pratos de uma mesma balança, ou seja, legalidade e legitimidade. Os bolsonaros têm apostado, e até aqui têm faturado nos lances, que o polo da legalidade se ajeita às comodidades do outro polo. Leia-se: as leis são mutáveis, especialmente se a Casa das Leis se dobra a um poder que se presta a moldar as leis por força de um toma-lá-dá-cá. É o Centrão, este sim, guardião juramentado de porta, porteira e portão de quantas boiadas se encaminhem. Tem sido assim, negue-se quem quiser.
Vejamos: foi dessa maneira em vários governos e mandatos: FHC, Lula, Dilma, Temer, com o agora Bolsonaro e com este já preparando o ex-Bolsonaro, este que já se mobiliza em campanha para um novo round, desta feita, mais sincero, mais à vontade e sem ter de prestar contas a “lavajtismos” e “liberalismos”. Moro já era e Guedes, que jactava saber atrair trilhões, com privatizações, desonerações e outros ões, vê se desmanchar a nata de sua tecnocracia.
Bolsonaro não é massa empírica com que se gaste qualquer ciência, pura ou prática, para que seja entendido. Talvez, nem ele mesmo se entenda. Nem o generalato que o cerca. Ele nem é ele, pois é capaz de se desdizer entre a saída, pela manhã, do Palácio da Alvorada, e o seu retorno, a depender de qual dos filhos esteja orientando a próxima live. Diz-se castrense e portador de uma herança militar dos tempos da Guerra Fria. Entretanto, aquele regime não tinha bem um corolário ideológico, mas se ancorava no anticomunismo e num mandonismo avesso a desobediências. Se preciso, fechava o Congresso com um pacotaço. Se bem que o Poder Legislativo da época fosse um mero Congresso dos partidos do Sim (MDB) e do Sim Senhor (Arena).
A birra do bolsonarismo já é, por algum mecanismo de fixação, o STF. Em termos de regime, o antigo tinha lastro na Escola Superior de Guerra (Segurança e Desenvolvimento). O atual tem o lastro ideológico de um desbocado “filósofo”; as estratégias dos filhos mentores; e a atuação dos utentes de uma certa “liberdade de expressão”, nas ruas e nas redes sociais.
O regime político que deu um golpe em João Goulart designou-se “A Revolução”. E precocemente, ainda com o Marechal Castelo Branco, tratou de se apropriar das propostas da Esquerda, entre elas, a de um nacionalismo estatizante. Neste momento, Bolsonaro se apropria das “conquistas populares” do PT e as renomeia, já orientadas para a construção de um novo Bolsonaro: popular, populista, nada liberal, muito pelo contrário, absolutista e ainda com o luxo do apoio de uma casta evangélico-clerical.
Partidos? Partido único e difuso, chamado Centrão, forma remanescente dos bolsões da velha política, os quistos coronelescos das décadas anteriores à Segunda Guerra. Era a política de um Brasil que resistia à modernidade, como uma plêiade de quistões pelo mundo. À falta de alguma consistência programática, esta volta do Brasil ao rol dos países do anti – antidemocráticos, antieducação, anticiência, antiecologia e outras modalidades –, é a reconstrução do Brasil não mais sob o ilusionismo revolucionário, mas sob as velhas bases da velha política, um Brasilquistão regido por um estranho e velho regime, sob nova gestão, o Bolsonaristão.