Nem se poderia chamar de cidade. Era mais uma aldeia. Pequena, uns dez mil habitantes. Todos muito pobres. Como em todas as pequenas cidades do sertão nordestino. Nelas não há ação de governo nem de entidades humanitárias. Só tem Igreja. De lá que vem a resistência desse povo.
Telhado de palha, paredes de adobe, ambos estragados, banheiro no mato. Lenha sobre velhos tijolos seria o fogão. Dois jumentos e meia dúzia de cabras no pátio, algumas galinhas, uma cacimba com pouca água e uma lata para retirá-la. Ali sobrevivem há 50 anos Sabino e sua mulher Esmeralda. Dois filhos morreram cedo. Por falta de comida, pouco leite das cabras e, claro, médicos e remédios.
Os vizinhos sofrem as mesmas carências, a eterna miséria da seca. Pés de feijão, mandioca e milho garantem o mínimo de proteínas. Fora as trocas com os vizinhos. Esmeralda há dias não come, e se queixa de dores na cabeça, no ombro, dificuldade de respirar. Não sente mais o cheiro de nada, nem do cangote suado de Sabino, que sempre reclamou. Sabino se preocupou. Ouvira na velha TV sobre uma doença estranha, chamada ”corocaviras”´, que estava matando todo mundo.
Sabino decidiu levar logo a mulher para a capital. Lá sua querida esposa seria bem tratada. Foi na Prefeitura pedir ajuda, uma ambulância, mas a resposta foi negativa. Ter tem, mas tá quebrada, explicaram. O compadre Elias se dispôs a levá-los em sua velha Rural Willis, e ainda trazer de volta. Ela foi estirada no banco de trás, já muito abatida. Sabino quis trocar a camisa suada mas ela retrucou: “Precisa não, não sinto mais seu cheiro.”
O compadre Elias era um amigão: ainda ajudou Sabino a carregar Esmeralda para dentro do hospital porque não tinha maca para transportá-la. A moça da portaria veio pedir desculpa e disse que não tinha quartos livres, talvez só depois de amanhã. “Se ajeitem num sofá, é o jeito”, disse. Sabino sentou primeiro, a mulher colocou a cabeça em seu colo e as pernas dela ficaram para fora. Era um pequenino sofá. Elias preferiu dormir na Rural.
Dia seguinte arranjaram um quarto. Esmeralda estava mais abatida e tossia muito. Teria de ser entubada. Sabino se revoltou – entubar? – queria bater no médico, mas depois lhe explicaram de que se tratava. Acatou a ordem. Solicitaram então o respirador. Sabino se alterou novamente. Máquina pra respirar, como? Quando o médico começava a explicar a enfermeira interveio: Doutor, não há respirador disponível. Aí o médico foi embora zangado: “Assim não dá.” Faltava ainda o uniforme especial da enfermeira.
A pobre Esmeralda já não passava nada bem. Sabino, ao lado da cama, chorava baixinho. “Eu queria pegar essa doença sei-lá-o-quê para ir para o céu com você” , murmurou o marido. Deu para ela escutar, mas os olhos já se estavam fechando. Minutos depois faleceu. Jura Sabino que a mulher lhe deu um sorriso de despedida, e ele percebeu. “Tá vendo? – virou-se Sabino para Elias. “Não tem maca, não tem remédio, nem respirador e mais um monte de coisas, mas ficou o amor e o sorriso da minha mulher,” falou alto Sabino.
O médico, exausto de um plantão de 24 horas, com outras mortes, voltou e deu um abraço em Sabino. Depois, abraçado com Elias, os dois amigos praticamente sem dormir, foram tratar do enterro de Esmeralda. Procuraram o serviço funerário do hospital porque não tinham dinheiro para o sepultamento. No atendimento lhes informaram: Não há vagas para enterros hoje nem amanhã.
Conformados com a ausência de quase tudo, Sabino e Elias combinaram voltar para casa e enterrar Esmeralda embaixo de uma jaqueira a 50 metros da casa, que fora plantada por ela própria, há trinta anos. O hospital fez o embalsamamento, o caixão foi colocado na traseira da camionete. Os dois partiram de volta para a cidadezinha do sertão, onde não tinha nada. Assim como na capital, onde não havia quase nada no hospital que iria salvar Esmeralda. A lua quase cheia e Sabino, mesmo sofrido, estava calmo: o último ato de Esmeralda, ao partir, foi dar um sorriso para ele, fixando-o com os olhos.
— José Fonseca Filho é Jornalista