Isto foi numa das décadas Nova Era (New Age) da minha vida, da minha juventude querida, que os anjos não trazem mais. Pois, foi. Brasília era de uma solidão que até hoje me dói, a cidade não tinha quase gente e eram poucos carros a coruscar pelas avenidas e eixos, como estrelas cadentes no breu que era isso tudo, imagine, por exemplo, o que era o que é hoje o cosmopolita e metro quadrado dos mais caros do Planeta. O Sudoeste era cerradão despovoado, servido tão somente por trilhas de fazer medo, desconfio que até lobisomens apareciam por ali, malfeitores, sim, absoluta certeza.
Pois, foi. Numa dessas, ou melhor, numa daquelas, a gente ficava sabendo de algo raro, alguma coisa por fazer na rarefeita Nova Capital. Àquela época, quando éramos todos forasteiros, o frio, a secura e a poeira castigavam muito mais que hoje, mas, mais ainda era a solidão, uma destas quase matadora, não matava de pronto, para poder ir magoando aos pouquinhos. Era solidão para uivar feito cachorro perdido em capoeira e não ouvir nada responsar a léguas. Boteco fechava cedo e mesmo o que era a Catedral dessa seita dos notívagos, o Beirute, quando passava de uma da madrugada lá vinham os garçons, desta feita, sem os uniformes, atirando água com sabão e raspando escovão no piso encardido, para a gente levantar as pernas, terminar de engolir a saideira e vazar no mundão velho sem eira nem eito.
Véspera de Carnaval, imagine o que era carnaval em Brasília, por aquela época, ainda mais para mim, estudante, solteiro, duro, andando de ônibus nesta vastidão que, nas aulas de Cultura Brasileira, o professor Cassiano Nunes comparava ranzinzamente a cenários de filmes de Antonioni, bota ermos nisto. Ele mesmo, contava que saía por madrugadas insones, da W-3 Sul até o Eixão, e vislumbrava, à meia luz, os andaimes e as gruas dos prédios em construção, muitas das quadras 200 ainda nos esqueletos. E fantasiava: É um cais de porto. Ele era de Santos. Foi, então, que soube, ia haver um workshop num retiro espiritual, longe pra dedéu, mas, me preparei, aviei uma trouxa, era para todo o feriadão, sistema de internato. E o “investimento” era módico.
O tema central do workshop, nem me lembro bem, mas era algo assim, tipo “A importância do Xamanismo para a Era de Aquárius”. Muito marcante, a facilitadora era uma xamã formada, uma gringa norte-americana. De início, fiquei um pouco decepcionado, pois esperava era que fosse uma índia velha importada lá de alguma tribo do deserto mexicano, coisa de personagem de Carlos Castañeda, estilo sabe tudo sobre rituais mágicos à base de peyote. Mas, valeu. Uma coisa que me agastou foi que ela queimava muita erva, umas que ela trazia num embornal, desde as plagas de onde fizera a iniciação, com os mestres-feiticeiros. Engraçado é que com desses rituais e persignações ela tirou material para uma tese de doutorado e além do magnífico diploma ela saiu de lá também como feiticeira graduada.
As aulas dinâmicas eram ministradas em redor de uma fogueira e pelo menos a cada dez minutos ela atirava uma porção de folhas nas labaredas e isto tinha uns efeitos estranhos, mas comigo não rolou muito certo, pois eu trazia já de menino uma birra com catinga de fumaça, adquiri essa intolerância desde os tempos em que a gente ardia os olhos para ajudar a soprar tição em fogão a lenha e adjutorar fogueira junina, oh dificuldade, sobretudo, quando algum preguiçoso de ir longe botava graveto verde, o que minguava as chamas e deixava a gente para ir dormir com cheiro de fornalha. Menino em sertão serve para tudo. Por vezes, davam pra gente a tarefa de sair no escuro a catar bosta seca de gado para queimar, entendiam os grandes que aquilo espantava muriçoca. Só podia, aquela muquifa espantava qualquer coisa.
Compreendam, portanto, que eu tinha um “back-ground psicológico” para não acatar com agrado qualquer proposição fumacenta, mesmo sendo uma novidade daquelas, seções xamânicas. Ocorre que a gringa com juba cor de cabelo de milho realmente exagerava na queimação das ervas catinguentas, mas, segundo ela, mágicas e poderosas, assim tinha aprendido lá com os nativos do Arizona, especialmente nas noites de lua cheia, e era o caso, ali. Ademais, notei que ela tinha de ajuntar fogo e fumaça aos ditamos que ela ia recitando num idioma que, inglês é que não era.
Ufa! Aguentei firme, abafei a tosse, engoli os bufos para suportar os tufos. E eu até notei que ela notou que eu me contorcia, mas, aí é que ela resolveu prestar mesmo atenção em mim, com coisa que acreditava que eu era mais sensitivo do que os demais – uma dúzia de perdidos que nem eu –, às emanações com os espíritos, àquela altura da noite já baixados e afinando sintonia com os dizeres que ela mandava a gente ir repetindo na tal língua estranha. Se me lembro direito, era hopi. Imagine, rezar em navajo e em conjuminação com as forças do além, mesmo sem saber o que e a quem.
O que parece que fugiu do combinado, e mesmo do controle da mestre de cerimônia, foi uns gajos resolveram, no meio do ritual, se sentir à vontade para também puxar fumaça de suas ervas, nisto a professora não foi muito de acordo, parece que ela tinha obrigação contratual de não fazer apologia ou uso de substâncias “tóxicológicas” ilícitas. Todavia, passava de meia-noite, e estávamos bem retirados de qualquer supervisão de autoridades – militares, civis e eclesiásticas. E o trem, como dizem os mineiros, fedeu mesmo. Aí é que juntou a catinga de um lado com a catinga do outro, a fumaceira disputou qual tinha o bodum mais poderoso… Perdão, mas eu não tirava da cabeça a murrinha do cheiro de bosta seca de vaca queimada para espantar muriçoca.
Não recordo bem qual foi o acordo, o fato é que no dia seguinte eu estava, para a minha surpresa, sem nenhum “bode” e, pode até parecer que eu me tenha sugestionado, mas passei um dia bem mais leve, um tanto lerdo, mas, nem aí para as preocupações. Vi-me, creiam-me, alçado mesmo a um diáfano patamar de alumbramento, nada a ver com as ressacas pós-coivaras fumacentas de lenha verde lá do sertão. Nada de ressaca, mesmo a gente ter varado madrugada e o xamanismo ter-se concluído com todos nós cantando e saltitando à exaustão de cair, em redor de um fogueirão alto e envoltos em fartuns de ervas raras.
Hoje, tudo esvanecido em lembranças. Não retive muito dos ensinamentos xamânicos. Mas, valeu. Aliás, como tudo na vida. Não posso dizer que aprendi alguma coisa útil em matéria de feitiçaria, sequer algum passe mágico de acesso às entidades cooperantes. Também nunca mais tive a oportunidade de um workshop xamânico, se alguém souber de algum, tô dentro, mas, tem de ser com uma xamã doutora, branquela, sardenta, cabelo de espiga de milho, loquaz nos ritos e idioma hopi, e com as ervas adequadas na sacola.