Quando tudo “isso daí” passar – e isso há de passar – algumas cenas ficarão no imaginário do brasileiro, como quadros descritivos e representativos do momento presente. Neles, elementos trágicos e cômicos se misturam e revelam, sem o saber, como o possível e o impossível se entrelaçam, como a caricatura e o real se completam e se complementam em um cenário de devastação.
Tantas são as loucuras e tão diversas são as ilustrações que – confesso – tive dificuldade em selecionar duas amostras significativas do legado de nossa miséria. Convido o leitor a tentar selecionar as suas, guardá-las consigo e rememorá-las, de vez em quando, junto aos seus, para que jamais nos esqueçamos desses dias, desses tempos, dessa tragédia que se abateu sobre o nosso país e que ainda não divisamos o desfecho.
A primeira imagem-síntese que selecionei para representar a caricatura do tempo em que vivemos é aquela em que o governante do país aparece com uma máscara torta, encobrindo os olhos – ao invés da boca e do nariz – como seria se de esperar. Totalmente desajeitado com o inusitado objeto a que foi induzido a usar por recomendação das autoridades sanitárias do país, ele estava nitidamente contrariado e deixava transparecer, involuntariamente, o seu negacionismo contumaz à doença que ameaça a humanidade.
As sucessivas tentativas para recolocar e ajeitar a máscara pareceram-me igualmente significativas. Lembrou-me aquela criança mimada que, ao ser obrigada, pelos pais, a colocar o casaco ou o sapato, os coloca de qualquer jeito, com raiva, quase que como uma afronta àqueles que a impuseram a tamanha “humilhação”.
O resultado foi certeiro e já esperado: não adiantou nada. O chefe da nação não passou a mensagem desejada pelas autoridades sanitárias. Não incentivou ninguém – como deveria – a usar o objeto indispensável à contenção da doença que desafia a população mundial.
Afinal, como poderia se colocar como exemplo e incentivo ao uso da máscara se ele, Chefe de Estado, não acreditava na necessidade de seu uso e nem mesmo na própria doença que a demandava?
Ficou apenas a imagem caricatural e histriônica – mas real – da máscara que vendava os olhos do portador, replicada repetidamente pelas mídias sociais. Imagem icônica e representativa da cegueira generalizada de parte de uma nação, a parte que não via – ou não queria ver – o abismo que se aproximava e que tomava conta do cenário nacional .
O segundo e memorável episódio ilustrativo da tragédia nacional foi o do sanfoneiro cantando “Ave Maria” em homenagem às vítimas do coronavírus.
Simplesmente patético.
Praticamente obrigado a cumprir um protocolo em homenagem aos familiares das vítimas de coronavírus, em função das críticas contundentes vindas de todos os lados, após nada menos que 100 dias de silêncio e descaso para com a dor alheia, viu-se ali um presidente visivelmente desconfortável e inconformado por estar se prestando a tal papel. Sua inquietude no decorrer do vídeo não nos deixa dúvidas em relação a isso.
Restou ao sanfoneiro da Embratur (!!!!) cumprir o papel impossível. Chorar, sem convicção, através da música, a morte dos doentes e afagar, sem genuíno afeto, os familiares enlutados. Nada disso deu certo, claro.
O descompasso era total.
A equipe de marketing até que tentou. Achou que era o momento de reverter as críticas. Procurou uma música convincente e aparentemente “neutra”. Mas o cenário e o elenco definitivamente não funcionaram. Mesmo na representação precisa haver certa verossimilhança. Acontece que o domínio do “fake” está mesmo impregnado em tudo. O “mix” sanfona + Presidente + “Ave Maria” + CantorDaEmbratur + tradutora de libras da canção + MinistroDaEconomiaImóvel foi um impactante e inesquecível fiasco.
A representação da melodia desafinada que – atônitos e desconcertados – ouvimos e vivemos diariamente.
Imagem é representação. Uma imagem pode significar uma simples “fotografia” do real, do instante, mas também captar a representação do real que se encontra oculto, da essência que se esconde atrás da aparência.
As minhas estão aí.
Sanfonas e máscaras traduzem atualmente, para mim, sob a forma de imagens, a triste sinfonia do nosso país.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região)