Uma notícia apresentada em jornal de ampla circulação nacional chamou-me a atenção, recentemente.
O texto relatava, com aparente naturalidade, a atual tendência detectada entre os residentes de condomínios no Brasil. Falava da alta crescente de brigas entre vizinhos e condôminos, notadamente em razão do tema da flexibilização da quarentena. Uma verdadeira dor de cabeça para síndicos e administradores.
Segundo a notícia, vizinhos estariam travando grandes discussões sobre a necessidade de liberação das áreas comuns em prédios, em especial os parquinhos infantis, piscinas e academias de musculação/ginástica. Um cidadão teria advogado a abertura das piscinas, porque o próprio seria um nadador profissional. Enfim, mais um com histórico de atleta para a nossa lista de insanidades reveladas pela pandemia.
Mas o melhor mesmo foi o caso de uma moradora que, segundo a reportagem, teria arremessado um pedaço de carne pela janela, porque se encontrava insatisfeita com a não liberação da área de churrasqueira do prédio.
Li e reli a notícia. Mais de uma vez. Não é possível, pensei.
Aquilo não poderia ser real.
Mas era.
Faz tempo que já tínhamos notado que a era da barbárie havia aportado por aqui. Não só aqui, mas principalmente aqui. Afinal, não foi na civilizada Austrália que duas mulheres se digladiaram no supermercado por causa de um pacotão de papel higiênico? Embora até hoje eu não tenha entendido o porquê de tal atitude.
Mas aqui tem sido um festival. Dancinhas em torno de caixões, manifestações de encapuzados à la “Ku Klux Klan” em frente à Corte Suprema do país, pedidos de intervenção militar e reedição do AI 5. Terá tudo isso sido naturalizado e resumido, pictórica e simbolicamente, no arremesso de carne pela janela?
Seria esta a imagem síntese de nossa desgraça?
Alheios aos perigos e cuidados decorrentes da pandemia da covid-19, essas pessoas querem mesmo se arriscar aos perigos, expor seus filhos, seus parentes, idosos e sua própria integridade?
Teriam sido eles imunizados por alguma vacina que não foi disponibilizada a nós, simples mortais?
Seriam eles adeptos inconscientes do “humanitismo”, a filosofia singular de Quincas Borba, o famoso personagem imortalizado por Machado de Assis? Seu mentor intelectual, que deu nome ao romance homônimo de Machado, preconizava que a guerra seria a melhor forma de seleção dos mais aptos.
O célebre escritor jamais teria pensado que sua criação filosófica, baseada nas teorias de seleção natural, de Charles Darwin, tão em desuso, seria ressuscitada em sua terra natal, mais de um século depois, não mais como fina ironia, como tentativa de alcance do real pelo nonsense, mas como crua realidade.
Sim, a sobrevivência dos mais aptos é o mote da filosofia “humanitista”, assim como é o pensamento daqueles que rejeitam o isolamento social. Afinal, os mais velhos seriam os mais fracos e sucumbiriam naturalmente à doença, cumprindo, rigorosamente, a lógica do pensamento “humanitista”.
Em seu livro, Machado nos deixa uma pista de que a lógica da sobrevivência dos mais aptos não lhes garantirá a glória em vida. A História também foi implacável com teorias de tal gênero.
Da minha janela, ainda não assisti – felizmente – a nenhum torneio de arremesso de carne.
Qualquer manifestação de tal natureza me fará lembrar a famosa música de Eduardo Dusek, “Nostradamus”. Ao acordar, pela manhã, e se deparar com a barbárie, o compositor reagiu no limite impreciso que existe sempre entre o delírio e a sanidade e chamou Carlota, a cozinheira morta, gritando:
“- Levanta, me faz um café, que o mundo acabou!!!!!! “
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região)