Li que há uma petição, em Portugal, pela demolição da Torre de Belém e do Monumento aos Descobrimentos. Essa sanha primitiva que, nesse sentido, emula o Estado Islâmico, não precisará de grande esforço para vicejar no Brasil. Aqui, destruímos ou deixamos perecer, cotidianamente, nossa memória estética e histórica sem a necessidade de qualquer arguição heurística. Simplesmente não damos ao passado, e não raro ao próprio presente, a devida relevância para a vida e a nossa confraternização em torno dela. Nem mesmo para aqueles que nos são caros, dando sentido à construção cotidiana do que se entende por um povo, uma nação e um País. O que nos leva à angustiante constatação de que o futuro se nos apresenta com absoluta indiferença. Vivemos como se não tivéssemos construtores, atores determinantes e determinados; erros e acertos que marcam o risco no chão sagrado do tempo, onde imprimimos nossa passagem nas brumas incertas da existência.
Não somente por isso, mas, certamente com destaque, por isso também, nos sentimos e nos olhamos de uma forma tão desconcertante quanto desorganizada. Nossa reunião de virtudes em torno de um projeto ou de uma edificação de destinos, ainda que conflitantes, foi se desconstruindo ao longo do tempo, como se vencida fosse pela escalada contínua do insano e do mesquinho.
Nesse sentido, a vitória de Bolsonaro e sua grei, não é exatamente um ponto fora da curva. Sua assombrosa necropolitica, diante da pandemia que nos atormenta, evidenciou essa feição degradante de nós mesmos. Deu aos gestores do sombrio o comando de uma Nação que, há décadas, vem consumindo e corroendo as fraldas das suas últimas dignidades. A escalada do número de infectados e mortos pelo coronavírus, o alheiamento crescente dos brasileiros diante do caos que se nos avizinha, a normatização cotidiana da degradação dos atos públicos e da coisa pública constituem apenas os sinais mais recentes e evidentes de um País que adentrou em seu paroxismo.
A espantosa ausência de liturgia nas palavras e modos do presidente Bolsonaro, ao lado da proximidade dele e dos seus filhos da milícia e de milicianos, para não falarmos da miríade de ilegalidades por eles praticadas na presidência e sob a presidência da República, apenas reluzem nossa mais flagrante decadência. Num texto recente, publicado no caderno Aliás do jornal o Estado de São Paulo, André Jobim Martins, resgatando o conceito clássico de Sérgio Buarque de Holanda do “homem cordial” brasileiro – aquele que age com o coração -, nos oferece uma reflexão para a identificação de parte expressiva da sociedade brasileira com Bolsonaro e o bolsonarimo.
“O político ‘cordial’ não apenas contraria os princípios éticos esperados de autoridades do Estado, mas manifesta, além disso, uma radical incompreensão de qualquer ideia de impessoalidade na esfera pública. Não há, em seu horizonte intelectual, a ideia de uma república no sentido forte”, observa Martins*
* Como o ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda explica o Brasil atual – Aliás/30.05.20