O filósofo Hegel (1770-1831), em sua obra Filosofia da História, censurava nos historiadores de seu tempo a apreciação que faziam do imperador Alexandre O Grande. Hegel, admirador de Alexandre, dizia: “Não seria justo para essa figura maior da história mundial se Alexandre fosse avaliado pelos princípios modernos, por exemplo, os da virtude ou da moralidade subjetiva, como fazem os mais recentes historiadores menos preparados.”
O filósofo alemão enaltecia em Alexandre o seu favorecimento às ciências e às artes, para ele tão importantes quanto as conquistas para tornar perene.
A verdade, porém, é que além de fundar cidades e levar os feitos da civilização helênica para o Oriente, Alexandre também cometeu violências e crimes que se julgados à luz dos padrões identitários de hoje justificariam a remoção de seus bustos e de sua memória logo após suas conquistas, de tal forma que atualmente pouco restaria e pouco conheceríamos de sua presença na história. Alexandre, ao ocupar a cidade de Tiro, localizada hoje às margens do Mediterrâneo no Líbano, mandou executar todos os seus habitantes jovens e adultos e ordenou a venda das crianças e mulheres como escravas. E assim o grande general procedeu em vários episódios de suas conquistas.
Após a revolução socialista de outubro na Rússia, militantes radicais tentaram destruir relíquias do Museu Hermitage na cidade de São Petersburgo, a pretexto de que seriam símbolos do Czarismo. Lênin, o chefe da Revolução, protegeu as antiguidades com o argumento de que seriam representações da cultura e dos artistas e artesãos russos. Provavelmente, pelo critério das seitas identitárias contemporâneas, as obras deveriam desaparecer para que com elas cessasse o passado mórbido do regime dos czares.
O que ocorre é que formas de produção que se sucedem, ao construir seus novos sistemas de poder, procuram apagar a memória imediatamente anterior, por vingança, narcisismo ou insegurança. O capitalismo contra o feudalismo, o socialismo contra o capitalismo, de tal sorte que não restaria passado comprometedor.
Mesmo a Revolução Francesa, o rebento político mais celebrado do Iluminismo, nasceu banhada em sangue e na esteira da destruição. Ocupa lugar destacado na crônica da sordidez a obra do chefe de polícia de Napoleão Bonaparte, o sinistro Joseph Fouché, na execução de inocentes, na destruição de igrejas e símbolos religiosos. Fouché bem caberia no figurino de patrono da horda identitária da atualidade.
O odioso assassínio de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos desencadeou o justo protesto em todo o mundo, expondo as entranhas da sociedade racista e segregacionista construída à sombra da prosperidade material da América.
O paradoxo é que a onda contra a intolerância racial nos Estados Unidos produziu uma outra onda de similar intolerância em relação à história, à memória e ao passado. Nos próprios Estados Unidos, a estátua de Thomas Jefferson (1743-1826) foi sacudida de seu pedestal e atirada ao solo na cidade de Portland. Jefferson é considerado o principal redator da Declaração da Independência, o mais influente dos pais fundadores da Nação e foi o terceiro presidente dos Estados Unidos. Mas Jefferson era proprietário de escravos em uma sociedade escravocrata, o que à luz do identitarismo é o suficiente para bani-lo das praças do país que ele ajudou a libertar do colonialismo e a guiar para a ciência e a cultura.
Em Londres, o Poder Público foi obrigado a proteger uma estátua de Winston Churchill, líder, junto com Roosevelt e Stálin, da resistência ao nazismo e um dos responsáveis pela derrota de Hitler. Mas Churchill foi chefe de um império colonial decadente, o que ao juízo identitário é o suficiente para varrê-lo das praças de Londres, cidade que ele salvou da tirania nazista.
Na mesma Londres, identitários de “direita” já haviam vandalizado o busto do filósofo alemão Karl Marx, localizado em seu túmulo no cemitério Highgate. Em Londres, Marx viveu boa parte de sua vida e escreveu sua monumental obra filosófica e econômica.
Mas foi em Lisboa que a seita identitária, pretensamente “progressista” revelou sua face mais reacionária e intolerante, ao vandalizar uma estátua do Padre Antônio Vieira, defensor dos índios, dos pobres, dos judeus, do Brasil e de Portugal, as duas pátrias que adotou por toda a vida.
Denominado pelo poeta Fernando Pessoa imperador da Língua Portuguesa, tido por muitos como homem mais culto de seu tempo, autor de sermões consagrados pela literatura portuguesa, pregador convidado pelo Papa para a convertida ao catolicismo rainha Cristina da Suécia, prisioneiro da Inquisição, acusado de ligações com o judaísmo, expulso do Maranhão por defender os índios contra a escravidão, Vieira teve sua estátua atacada por militantes identitários em Lisboa.
Segundo os agressores, Vieira justificou a escravidão africana, o que tornaria justa a remoção de sua memória da Lisboa na qual pregou sermões imortais, e do Portugal que ele defendeu contra os inimigos de Castela e de Holanda.
Ao ensejo dos 400 anos do pregador, celebrados em 2008, a Universidade de Lisboa e a Santa Casa de Misericórdia de Portugal organizaram um consórcio para a publicação em 30 volumes das Obras Completas de sua autoria. Do empreendimento participaram dezenas de instituições portuguesas e brasileiras, entre elas as mais importantes universidades do País. Atentar, portanto, contra a memória de Vieira é afrontar também a memória do Brasil.
No Brasil, a estátua de outro pregador, o Santo José de Anchieta foi alvo da fúria identitária no Espírito Santo. Anchieta celebrou a missa considerada o marco fundador da cidade de São Paulo em 1554. Destacou-se e é reconhecido por sua obra de evangelização e de proteção dos índios contra a escravidão. Ajudou a convencer o chefe indígena Araribóia a se aliar aos portugueses para expulsar os franceses do Rio de Janeiro. Seu nome batiza o Palácio do Governo e uma cidade no Espírito Santo e se chama Palácio Anchieta a sede da Câmara Municipal de São Paulo.
O identitarismo é uma corrente originária nos Estados Unidos e que colonizou com ideias e dinheiro parte importante do movimento progressista no Brasil e no mundo. Foi denunciado pelo professor norte-americano Mark Lilla, da Universidade Columbia, como cúmplice pela ascensão da direita na América, ao dividir o povo.
Uma marca da ideologia identitária colonizada é a seletividade de suas campanhas e denúncias. O silêncio quando o motor do protesto não nasce nos Estados Unidos. Não se protestou, por exemplo, contra o massacre de 800 mil integrantes da minoria Tutsi, pelos Hutus em Ruanda, na África, na década de 1990. Centenas de milhares de crianças iraquianas pereceram vítimas do bloqueio norte-americano logo após a primeira Guerra do Golfo (1990-1991), sem que o identitarismo erguesse sua voz indignada, reproduzindo apenas o que o centro de difusão determina e orienta.
O identitarismo precisa ser contido e derrotado no Brasil como uma corrente reacionária que divide o povo, fratura a luta em defesa do interesse nacional e dos objetivos coletivos que desafiam o futuro de retomada do desenvolvimento, redução das desigualdades e construção da democracia. A luta contra o racismo e em defesa dos direitos sagrados das minorias só avançará quando integrada a uma plataforma mobilizadora dos mais amplos interesses coletivos e da nacionalidade.
O identitarismo importa modelo de sociedade estranho à formação social brasileira, miscigenada na sua origem, na sua cultura, na sua religiosidade marcada pelo sincretismo das Iemanjá e dos São Jorge, dos terreiros das mães de santo e dos pais de santo, tão distinto da religiosidade absorvida diretamente de pastores brancos pela população negra dos Estados Unidos.
— Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.