Começou a primeira guerra mundial. Os estados centrais abrem fogo contra Brasília. Numa ação combinada, os sistemas judiciais do Rio de Janeiro e São Paulo (tribunal, procuradores, policiais) conseguiram plantar uma cabeça-de-ponte para desembarque no território adversário. A Justiça carioca deu as armas para as polícias dos governadores Wilson Witzel (RJ) e João Doria (SP) cruzassem o Rubicão. O resultado dessa primeira batalha somente será conhecido em quatro ou cinco meses, quando as urnas das eleições municipais falarem.
O presidente sentiu o golpe, mas era uma manobra esperada há muito tempo. Fabrício Queiroz estava ali, guardado, para ser usado no momento certo. O momento foi agora, quando, como deixou escapar a deputada Carla Zambelli, na sua inconfidência desastrada, Bolsonaro estava pronto a usar as suspeitas de corrupção na compra de material médico para intervir nos estados. Arthur Bernardes (1922-26) governou quatro anos com Estado de Sítio e interveio em vários estados, inclusive na Bahia, Pernambuco e no próprio Rio de Janeiro, destituindo seus governadores.
Witzel já está tonto, nas cordas, à espera de um impeachment para lá de provável. Sua base parlamentar derreteu-se e só se ouve elogios ao vice-governador. Bolsonaro ganharia um aliado com o vice (ex-vereador) Cláudio Bomfim de Castro e Silva. Político ideológico oriundo das bases mais conservadoras do catolicismo, a tendência Renovação Carismática, é o coordenador do Ministério da Fé e Política da Arquidiocese do Rio de Janeiro, apresentado como cantor gospel e compositor sacro.
Em São Paulo o governador João Doria consolida sua posição de arquirrival do presidente Bolsonaro. Foi sua tropa de elite, o DOPE, que realizou a captura de Queiroz, numa operação tão secreta que nem mesmo os espiões federais tiveram conhecimento do alvo quando se organizava a ação, em cooperação com a seção da OAB de Campinas. Uma operação sem furos, diferentemente da invasão da casa do advogado Felipe Belmonte, vice presidente do partido Aliança, em Brasília, pela PF, sem cobertura legal da Ordem dos Advogados. Para não correr riscos, e mostrar a todo o mundo que não está para brincadeira, Doria remeteu Queiroz para Witzel num helicóptero próprio do governo de São Paulo. Coisa de profissional.
Bolsonaro não se assustou. Estaria no seu elemento, quando é atacado em todas as frentes. Sempre foi assim como deputado e, desde que assumiu, na Presidência. Sua estratégia é manter-se na ofensiva em contra-ataques fulminantes. Sua criatividade é impressionante, capaz de criar conflitos nas áreas mais inesperadas, abafando, assim, a pressão que estava sobre seu pescoço. Porém, seus antagonistas conseguiram um espaço para lutar contra ele, o Poder Judiciário. Está sob fogo inimigo na Justiça comum, STF, tribunais federais e estaduais, em primeira instância e na Justiça Eleitoral. Não é pouco.
No lado do presidente, ele conseguiu anular suas áreas de dificuldades: pulverizou o Congresso numa constelação de minorias, que se não impedem derrotas, também não têm força para viabilizar minimamente uma proposta de impeachment.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, está às voltas com mais de duas dezenas de denúncias, sem condições de abrir alguma delas, sob pena de se desmoralizar. Em contrário, isto é motivo para críticas de seus adversários, que o enfraquecem dizendo que é fraco. Coisas da política.
Bolsonaro garante-se à retaguarda com uma composição de governo sui generis. São quatro compartimentos. No primeiro, a família. Há o ideológico, trincheira fiel inexpugnável, como se demonstra na sustentação de ministros insustentáveis, como foi por muito tempo o caso do recém afastado Abraham Weintraub. Outro é o grupo de ministros chamados no mercado como o núcleo dos competentes, como a ministra da Agricultura Tereza Cristina, e os ministérios consequentes, como da Infraestrutura, da Ciência e Tecnologia, da Saúde (embora periclitante por causa da pandemia) e os demais dessa linha, incluindo aí o ministro da Economia, Paulo Guedes, que não se imiscui nos ninhos de marimbondos da política, mas também não dá murros em pontas de facas, mantendo a confiança dos segmentos econômicos, mercados e produção. Também os constrangidos militares. E assim vai.
Batalha judiciária
A luta foi inteiramente para o Judiciário. Este é um campo novo para o presidente, que construiu sua carreira como “enfant terrible” na área político-congressual e agitador denuncista nas campanhas eleitorais. Ter sucesso nesses espaços é não ter papas na língua. Quando era um político irrelevante, suas polêmicas passavam em branco. Chegando ao Palácio do Planalto, viraram explosivo.
Sem ter adversários à altura no Parlamento ou na sociedade civil, foi parar nas barras dos tribunais. Está levando pauladas de todas as instâncias. Aí entra o caso Queiroz, que acendeu o estopim de mais uma bomba nesta semana.
Nestas áreas concentram-se seus opositores com ameaças reais. Os adversários da frente ampla em formação, que vai da centro-esquerda (PDT, PSB, Rede, PV e outros), passando pelo centro e chegando à direita liberal (DEM, PTB e alguns nanicos), apostam no STF, com processos como das fake news envolvendo a família e amigos do presidente da República. Neste caso, o presidente seria deposto assumindo seu vice, o general Hamilton Mourão.
O grupo da esquerda ortodoxa, com PT e aliados, sonha com anulação da chapa vencedora das eleições, no TSE, também na vertente das fake news, embora em processos diferentes, mas já aglutinados pela troca de informações entre os tribunais. Esse grupo ilude-se com a nova eleição imediata, na expectativa de que poderiam retornar ao poder. Delírios de uma noite de inverno? A verdade é que aqui vale a máxima dos gaúchos: “não está morto quem peleja”.
Nos tribunais, o presidente está em francas desvantagens, o que, aparentemente, não o assusta, pois sempre operou em minoria nos seus tempos de político convencional. As composições dos plenários judiciários, de uma maneira geral, são hostis a seu governo. Indicados e nomeados por governos da antiga esquerda paulista, PSDB e PT, não engolem o estilo bolsonarista.
Entretanto, só o Judiciário não tem força para criar uma situação capaz de derrubar o presidente, pois seria preciso licença parlamentar, o que se considera impossível neste momento. Bolsonaro vai se equilibrando nesta corda bamba como é sua especialidade desde que criou a confusão que o afastou do Exército, mas lhe deu um eleitorado fiel (graduados aposentados e suas viúvas).
Nesse quadro, ele estaria numa manobra de retirada tática. A alternativa seria compor um governo de notáveis, jogando ao mar a ala ideológica. Alguns figurões estão sendo discretamente consultados. Com isto, teria os dois anos que ainda precisa para completar seu mandato e tentar nova legitimidade nas urnas, com uma reeleição contra todos e tudo, tal qual sua vitória em 2018. Para isto, o núcleo militar de seu governo seria o fiador de sua estabilidade. Bolsonaro teria de enfiar a viola no saco e comportar-se como uma legítima cria das Agulhas Negras, uma academia que cultiva o cavalheirismo e bons modos. Sairia de campo o Bolsonaro dos sargentos e QOAs do Exército e das Polícias Militares, entrando o capitão elegante. Difícil, mas possível.
Até essa definição, ele terá de se desvencilhar das pressões judiciárias. Pouco lhe resta, pois está em choque com a última instância de recurso, o STF. Para além disso, como se dizia nos bons tempos do Brasil Colônia, só lhe resta queixar-se para o bispo. Não lhe faltam bispos. Ou seja: é tudo eleição, a alma da política na democracia de massas.