Poder Moderador

Jamais colhemos safra tão generosa de cidadãos preocupados com a defesa da Constituição. O cenário de crise, reanimado após a cassação do mandato de Dilma Roussef e a eleição do presidente Jair Bolsonaro, estimula debates em torno da Lei Fundamental, cuja sobrevivência parece ameaçada.

É bom que aconteça. A renitente crise econômica contribui para a instabilidade política agravada pela inquietação social, por sua vez alimentada pelo desemprego e pobreza. Sentindo cheiro de pólvora no ar, a sociedade civil procura defender o Estado Democrático com a única arma de que dispõe: a Constituição.

Em Brasília, ao redor do presidente Jair Bolsonaro, atuam abertamente agentes provocadores, cujo objetivo aparenta ser convulsionar a ordem pública para justificar intervenção militar.

O Art. 142 da Lei Fundamental pertence ao rol dos dispositivos abertos a interpretações. Quem o redigiu o fez de caso pensado. Prescreve que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina (…)”.

Foto Orlando Brito

Deveria a Constituinte ter ficado por aí, eis que o Art. 84, que trata das Atribuições do Presidente da República, já lhe confere a prerrogativa de comanda-las. Prossegue, entretanto, o artigo, já de forma redundante, para acrescer “(…) sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

A parte final é plena de obscuridades. Não podemos nos esquecer de que a Constituição assegura a livre manifestação do pensamento, proibindo o anonimato. Permite que todos se reúnam pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, desde que não frustrem reunião convocada anteriormente para o mesmo local, exigindo-se apenas prévio aviso à autoridade competente (Art. 5º, IV e XVI).

A defesa da lei compete ao Poder Judiciário. A preservação da ordem pública é tarefa das Polícias Militares, subordinadas aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal ( Art. 144, § 5º).

Fazer oposição de maneira pacífica não fere a lei, nem atenta contra a ordem pública.  À falta de argumentos, os partidários do golpe recorrem à figura do Poder Moderador. Trata-se de instituto político previsto na Constituição Imperial de 1824. Dizia o velho Art. 98: “O Poder Moderador é a chave de toda organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seus primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos”. Ser Chefe Supremo da Nação e titular do Poder Moderador não impediu que a opinião pública exigisse de D. Pedro I a abdicação, concretizada em favor de D Pedro II do dia 7/4/1831.

Tancredo Neves – Foto Orlando Brito

Com a proclamação da República, em 15/11/1889, o Poder Moderador desapareceu. É incompatível com a clássica divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário. A Carta ditatorial de 1937, produto do golpe de 10 de novembro, manteve os Três Poderes. Apoiado pelas Forças Armadas, Getúlio Vargas não tinha necessidade do Poder Moderador. Fechou o Legislativo e governou mediante decretos-leis até 29/10/1945. Situação semelhante se repetiu durante o Regime Militar, encerrado sob pressão da opinião pública com a eleição de Tancredo Neves  em janeiro de 1985.

O Título V da Constituição trata do Estado de Defesa e do Estado de Sítio. O primeiro para “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. O segundo ocorrendo “comoção grave de repercussão nacional ou a ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa ou em caso de declaração de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira”.

Em ambas as situações exige-se a pronta intervenção do Congresso Nacional. No caso do Estado de Necessidade para aprovar ou rejeitar o decreto no prazo máximo de dez dias. No caso do Estado de Sítio para autorizar ou desautorizar o presidente da República a decretá-lo. Registre-se que, segundo o Art. 138, § 3º, da Lei Fundamental, “O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas”.

A sensação que Brasília nos transmite é da existência, em algum porão palaciano, de célula organizada por agentes provocadores e alimentada por membros da lúmpen-burocracia, com o objetivo de solapar a Constituição atacando o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal, para justificar golpe armado a pretexto da preservação da ordem pública.

Devemos permanecer atentos. Situações semelhantes costumam acontecer em países de democracia frágil e instável, como o nosso.

— Almir Pazziannoto Pinto é advogado. Ex-ministro do Trabalho e presidente Tribunal Superior do Trabalho

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