A convocação lhe soa estranha?
Será mesmo?
No país onde o irreal virou concreto, onde fake news virou verdade, onde a terra virou plana, onde a caricatura virou crua realidade, por que estranhar a convocação?
Afinal de contas, não acabamos de receber a notícia de que o governo federal pretende esconder os dados estatísticos da epidemia da covid-19, colocando para debaixo do tapete os mortos que lhe são inconvenientes?
As notícias chegam ao absurdo de se cogitar na possibilidade da recontagem dos mortos. Ao contrário de todas as evidências, que indicam subestimação dos casos da covid-19, em razão da subnotificação, o governante do país acredita que os números divulgados foram superestimados.
Estratégia parecida foi realizada pelo governo militar nos anos 70. Eu era menina, mas lembro perfeitamente quando, de um dia para o outro, minhas aulas foram suspensas em razão de uma epidemia de meningite – que não existia!!!
O que era até então inexistente passou a existir, como num passe de mágica. E só passou a existir porque não dava mais para esconder. Agora o sistema é inverso. Passaremos a considerar o existente como se não existisse.
Antes, o “não-ser” passou – inexplicavelmente – a “ser”. Agora, o “ser” passou a “não ser” mais ou, talvez, como se trata de mortos, o “não ser” (o morto) passou a “ser” (vivo). Bom paradoxo para os filósofos resolverem. Deixo para Olavo de Carvalho. Parmênides ou Zenão não dariam conta. Afinal, já disseram, o Brasil não é para amadores.
Deixando de lado os filósofos (e seus arremedos), retornemos aos mortos – que agora serão vivos. Ao que tudo indica, o governo pretende acabar com a pandemia por decreto e, para assim o fazer, precisará ressuscitar alguns – ou muitos – mortos.
Ressuscitados, resta-nos apenas a alternativa de convocação provocativa do título desta crônica. Marx jamais imaginaria que sua famosa frase fosse desvirtuada a tal ponto.
A ideia dos mortos ressuscitados evoca-me “Incidente em Antares”, último e genial livro de nosso querido escritor gaúcho, Erico Veríssimo. O autor faz uso de elementos fantásticos para abordar temas reais, no gênero literário denominado realismo fantástico. Trata-se, em síntese, da história de sete cadáveres que não puderam ser sepultados por conta de uma greve dos coveiros da pequena cidade fictícia de Antares.
Revoltados com sua condição de mortos insepultos, os cadáveres resolvem lutar por seus direitos e tratam de perambular pela cidade a fim de conseguir o seu intento: a garantia de um enterro. Que nem precisava ser digno.
E como o fazem? Ameaçando divulgar os podres da localidade, de seus habitantes, de seus líderes.
Sem temerem retaliações – por motivos óbvios – os mortos insepultos vão circulando pela cidade e espalhando o temor do descortinamento coletivo de toda a podridão de sua estrutura.
Assim como em Antares, nossa sociedade está exposta. Não somente ao vírus que nos amedronta. É que a doença revelou suas mazelas, suas entranhas, seu lado mais cruel. Uma desigualdade social imensa, que faz com que os efeitos da doença sejam sentidos como mero tédio, para alguns, e como fome e miséria, para outros.
Sim, cadáveres de 30 mil mortos – até hoje – refletem e expõem nossa sociedade decadente e a falência de um sistema econômico que nossas elites insistem em seguir.
Se a epidemia era iminente e inevitável, a forma de enfrentá-la faria toda a diferença. Partiu-se, contudo, para a solução absurda: apagar os vestígios de sua existência.
Em Antares foi assim. Passado o perigo e enterrados os mortos, os habitantes da cidade, envergonhados, foram acometidos – todos – por uma amnésia coletiva.
Por aqui, nem sequer vislumbramos um final, mas quando ele chegar – ele há de chegar – não quero amnésia nem neuralizador que apague a nossa memória, como no filme “Homens de Preto”.
Contemos, todos juntos, a história da nossa Antares. Dos mortos que viraram – ficticiamente – vivos e que se uniram para continuar sendo – tristemente – mortos, denunciando, pela voz dos vivos, uma mentira, várias mentiras, insuportáveis.
“O Resto é Silêncio”, o silêncio respeitoso pelos que se foram.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região)