Do jet ski ao alazão. A trajetória de um cavaleiro errante

Pilotar um jet ski no Lago Paranoá, em Brasília. Cavalgar na Esplanada dos Ministérios, também na capital da República. O que estes gestos têm a ver com um conto do cronista gaúcho Luis Fernando Verissimo? A cronista conta aos leitores d'Os Divergentes

O presidente Jair Bolsonaro cavalgando na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Foto: Orlando Brito

Há poucas semanas, deparei-me, incrédula, com a cena de um certo indivíduo, lépido e esvoaçante, pilotando um jet ski pelas tranquilas águas do Lago Paranoá em meio a maior pandemia da história recente da humanidade.

Agora, mais uma vez, fui surpreendida com a figura saltitante e sorridente de um cavaleiro montado em seu cavalo alazão, galopando pela mais famosa praça do Planalto Central, a despeito do traço eminentemente urbano daquele sítio turístico e – mero detalhe – da permanência e piora no quadro epidêmico no país.

Os dois episódios imediatamente remeteram-me à lembrança de uma antiga crônica do incrível Luis Fernando Veríssimo. Chamava-se Pôquer Interminável.

No texto de Veríssimo, 5 jogadores viciados em pôquer não conseguiam sequer se levantar da mesa onde jogavam há dias ou semanas, tamanha a absorção neles mesmos, a imersão em seu pequeno universo obsessivo.

“Ninguém sai”! Este era o jargão repetido pelos jogadores ensandecidos, alheios a tudo e a todos.

A esposa de um mandava chamar e o jargão era lembrado: –  “Ninguém sai”.

A família estava sem dinheiro.  -“Ninguém sai”.

O filho de outro estava nascendo! Mais uma vez o jargão vinha à tona: – “Ninguém sai”.

A mulher do terceiro o tinha abandonado porque este não aparecera em casa por duas semanas. “Ninguém sai”.

O texto retrata, com o humor peculiar do famoso cronista, o egoísmo dos jogadores contumazes, a prisão que circunda seus hábitos obsessivos, traços estes ali elevados ao superlativo, ao absurdo, ao infinito.

A lembrança da crônica foi automática. A visão daquele que tem histórico de atleta perambulando pela cidade paralisada pelo isolamento social pareceu-me similar ao retrato traçado por Verissimo há mais de 30 anos. Por dois motivos.

O repetido mote “Ninguém sai” foi o primeiro deles, pela proximidade (mas com sentido diverso) com o atual “Fica em casa” em que estamos – todos – mergulhados em razão da quarentena e distanciamento social impostos pela pandemia.

O segundo – e mais importante – pela demonstração grotesca de egocentrismo do autoproclamado atleta e seu total descolamento da realidade circundante. A obsessão cega por si mesmo e o desprezo absoluto pelas necessidades, dores e luto dos outros pareceram-me quase inacreditáveis, elevadas ao superlativo, ao absurdo, ao infinito, tal como apontei em relação aos personagens da crônica, só que agora na versão real. O que era caricato e engraçado na ficção virou triste e doída realidade.

E o teatro do absurdo prossegue: – Sr., hoje foram 730 mortos! –  disse algum transeunte desavisado.

E daí? “Eu” vou andar de jet ski!

O Brasil virou o epicentro da pandemia mundial! – lembrou algum assessor.

“Eu” vou cavalgar e cumprimentar meus eleitores, meus apoiadores!

Jair Bolsonaro, presidente da República, pilotando um jet ski no Lago Paranoá, em Brasília

Entre seus apoiadores, o cenário da noite anterior nos mostrou um pequeno grupo mascarado, segurando tochas e brandindo contra a democracia, num ritual que evoca um passado sinistro.

Os diálogos são hipotéticos. Os fatos, você sabe, são inacreditavelmente reais.

Triste trajetória de um cavaleiro cada vez mais solitário.

Pensativa, relembrei o mote dos jogadores: – Aqui em casa, “Ninguém sai”.

#fica em casa

* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região).

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