Na história dos escândalos políticos no Brasil, em geral gravações de áudio e vídeo que serviram como seu estopim, quando reveladas, foram de cara desconsideradas como a bala de prata, o famoso batom na cueca. Foi, assim, por exemplo, no escândalo do painel eletrônico do Senado que causou as renúncias dos então poderosos senadores Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda. O mesmo ocorreu no caso Waldomiro Diniz, o primeiro escândalo no primeiro governo Lula.
O que sempre se espera é uma literalidade nessas gravações que, por sua qualidade técnica ou atropelo nas próprias palavras de quem se autocensura ao falar algo arriscado, nem sempre são tão explícitas. Mas sempre dão as pistas que, se devidamente apuradas, esclarecem os fatos. É o caso do vídeo divulgado por ordem do ministro Celso de Mello, decano do STF, da reunião ministerial de 22 de abril em que o então ministro Sérgio Moro se sentiu ameaçado pelo presidente Bolsonaro, em mais um capítulo das suas pressões para interferir na superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro.
São vários os momentos no vídeo em que fica claro que Sérgio Moro era o principal alvo dos raivosos ataques de Bolsonaro. Primeiro com a encarada que deu no então ministro da Justiça ao enfatizar sua decisão de interferir em ministérios e a sentença “e ponto final, pô”, que, irritado, proclamou ao olhar de novo para a câmera.
Depois, com seguidas e explícitas cobranças por não receber informações da PF, a falta de uma dura reação de Moro às medidas repressivas tomadas por governadores e prefeitos para manter o isolamento social, a resistência a adesão à sua política de armar a população, e várias outras. Bolsonaro também nunca aceitou as posições de Sérgio Moro, e de sua mulher Rosângela Moro, a favor da condução pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta no combate à pandemia do novo coronavírus.
É verdade que o semblante de vários ministros exibia constrangimentos na reunião ministerial. O de Sérgio Moro, tido como frio nessas ocasiões, então, era de puro mal estar. Alguns dos participantes dessa reunião, antes da versão oficial para acochambrar a história, haviam dito que havia sido uma saia justa para Moro. O que aconteceu antes, bem antes, durante e depois só reforça a intenção do presidente.
Ele mesmo se entrega. E não é pela primeira vez. Ao chegar ao Palácio da Alvorada, nessa quinta-feira à noite, Bolsonaro revelou que soube, por meio de policiais amigos, que estavam sendo “plantadas provas” nas casas de seus filhos para serem flagradas em um operações de busca e apreensão armada pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzell. “Sabiam do problema do governador, que queria a minha cabeça a todo custo? Que o objetivo dele é ser presidente da República, né? E para isso tinha que destruir a mim e à minha família. O problema todo vivendo sob tensão”.
Nessa grave circunstância, Bolsonaro disse que apelou a seu ministro da Justiça. “Moro, eu não que quero que me blinde. Mas você tem a missão de não me deixar ser chantageado. Nunca tive sucesso para nada”.
Perseguição e chantagem a um presidente da República seja por quem for merece ampla investigação da Polícia Federal, do Gabinete de Segurança Institucional, do Ministério Público, Ministério da Justiça e de todas as forças federais. A rigor, é um atentado à democracia. Nenhuma dessas instituições recebeu pedido algum para essa apuração. O que houve foi uma tentativa de por baixo dos panos dar uma carteirada federal nos órgãos de investigação no Rio de Janeiro.
O ex-ministro Sérgio Moro, alvo do apelo não atendido de Bolsonaro, respondeu ontem à noite em uma rede social, dizendo que não cabe ao ministro da Justiça interferir em investigações estaduais. “Não cabe também ao ministro da Justiça obstruir investigações da Justiça Estadual, ainda que envolvam supostos crimes dos filhos do Presidente. As únicas buscas que conheço deram-se sobre um filho e amigo em dezembro de 2019 e não cabia a mim impedir”.
É essa a questão. Bolsonaro confunde os seus poderes e até imunidades presidenciais como extensivos ao clã e aos amigos. Daí suas tentativas, desde meados do ano passado, de tentar controlar a Polícia Federal para a proteção de todos. Daí não surpreender sua confissão na reunião ministerial, registrada em vídeo, inclusive o olhar de soslaio do vice-presidente Hamilton Mourão, de que não confia em nenhum dos serviços oficiais de informação. “Só o meu sistema de informação funciona. O meu particular funciona”. Que sistema é esse? Saiu daí a informação de que o capitão Adriano Magalhães — miliciano que chefiava o Escritório do Crime, uma organização de pistoleiros de aluguel acusada de participar do assassinato da vereadora Marielle Franco — teria sido torturado antes de morto pela polícia da Bahia?
Tem muita sombra sobre o passado e o presente do clã Bolsonaro. Tentar melar investigações federais ou estaduais só amplia os problemas e motiva novas apurações.
A conferir.