“Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. Essa frase de Jarbas Passarinho na trágica reunião ministerial em dezembro de 1968 que referendou a edição do nefasto AI-5 virou célebre como exemplo de vale tudo para se manter no poder. Passarinho foi um coronel do Exército, estudioso, que, fraquejadas à parte, teve uma brilhante carreira política, inclusive em embates famosos com colegas no Senado Federal em momentos mais gloriosos do Parlamento.
Bem diferente de Jair Bolsonaro, que continuou tosco mesmo tendo tido a oportunidade de estudar em uma escola de elite como a AMAN, a Academia Militar das Agulhas Negras. Bolsonaro, porém, foi aprovado no dificílimo teste das urnas e se elegeu presidente da República com o apoio da maioria dos eleitores que votaram. Foi uma inegável vitória apesar do costumeiro chororô dos derrotados.
O sucesso eleitoral de Bolsonaro se baseou principalmente em dois pilares — o combate à corrupção, tendo como modelo a Operação Lava Jato, e irrestrito apoio aos órgãos de investigação, e a promessa de que, diferente de praticamente todos os presidentes eleitos após a ditadura, não costuraria uma maioria no Congresso na base do toma lá, dá cá.
Em seus 15 meses de governo, mesmo aos trancos e barrancos, teve várias fraquejadas, mas ainda não havia ultrapassado a linha do estelionato eleitoral. Nem foi por vontade própria. Cada vez que alguma investigação sobre malfeitos se aproximava de sua família, ele punha na roda as promessas de campanha em busca de proteção para seu clã. A cabeça de Sérgio Moro, por exemplo, começou a entrar na roda quando ele apostou em um acordão com os presidentes do STF, Dias Toffoli, e da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para criar uma rede de proteção para o primogênito Flávio Bolsonaro, enrolado em investigações sobre Rachadinha na Assembléia Legislativa e as milícias no Rio de Janeiro.
Além de tirar o estratégico Coaf de Moro, Bolsonaro chegou a anunciar a demissão do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, e de superintendentes da PF. Achou que seria fácil por avaliar que Sérgio Moro, naquele momento, estava fragilizado com a divulgação pelo site The Intercept de conversas banais em todas as esferas do Judiciário como se fossem escandalosas. Moro não se intimidou, ameaçou se demitir, teve o apoio dos generais do governo, e Bolsonaro, a contragosto, recuou.
O cristal rachou ali. De lá para cá, foram várias tentativas de interferência de Bolsonaro barradas por Moro. Como a de lhe tirar o comando da Polícia Federal desmembrando o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. A tragédia da pandemia do novo coronavírus parecia ter baixado a bola. Mas a inevitável crise econômica dela decorrente — aliás, mundial — turvou a ilusão do presidente que apostava em sua reeleição. Ele passou a ver fantasmas.
A correta condução do ministro da Saúde, Henrique Mandetta, frente à epidemia, que ganhou o reconhecimento popular, causou inveja doentia igual a que Bolsonaro sempre teve de Moro. Isso só aumentou sua insegurança, desespero e os tiques nervosos registrados pelas câmeras de fotógrafos e cinegrafistas. Queria, mas tinha medo de demitir Mandetta. O ministro sabia disso e, cansado de tantas bolas nas costas, forçou a própria demissão. Deixou o presidente sem saída. Quando finalmente o demitiu, Bolsonaro sentiu um alívio, mesmo com o desgaste, pelo mundo não ter caído na sua cabeça. Seus filhos e puxa sacos em geral, então, o estimularam a se livrar de seus outros desafetos no governo, apesar dos conselhos em contrário de seus generais.
Jair Bolsonaro, então, resolveu partir contra Sérgio Moro. Ignorou que Mandetta ganhou notoriedade relâmpago por passar confiança a população no começo da pandemia, enquanto Moro ao entrar em seu governo se tornou o principal fiador de suas maiores bandeiras eleitorais. Deu ruim. Apostou errado e caiu do cavalo. Ficou manco depois do pedido de demissão de Moro, justificado em um pronunciamento em que acusa o presidente de tentar interferir na Polícia Federal para livrar sua família e sua turma de investigações. Sua reação foi uma confissão, perante ministros constrangidos, que sequer resistiu às primeiras provas apresentadas por Sérgio Moro no Jornal Nacional.
Bolsonaro perdeu o discurso. Não dá sequer para avaliar se, em algum momento, ele teve alguma crise de consciência, como Jarbas Passarinho. Sua opção, influenciado pelos filhos, foi escolher amigos da família para os estratégicos Ministério da Justiça e o comando da Polícia Federal. A questão nem é saber se o ministro Jorge Oliveira e o delegado Alexandre Ramagem estão qualificados para as funções. Eles já entram carimbados. E mesmo que queiram já chegariam imobilizados nas investigações, blindadas pelo STF, que mais incomodam o clã Bolsonaro — os inquéritos sobre fake news e a articulação de manifestações anti-democráticas, que põem os irmãos Carlos e Eduardo Bolsonaro na linha de tiro.
Esse não foi o o único tiro no pé. Entre os fantasmas reais ou ilusórios que atormentam os Bolsonaros, além do STF, está a possibilidade de uma canetada de Rodrigo Maia autorizar abertura de um processo de impeachment por uma penca de crimes de responsabilidade. É aí que o Bolsonaro, que sobe em caminhonetes para dizer que não negocia com a “velha política”, com ele não tem vez essa “patifaria”, entra de vez em contradição. Ele está negociando alguns dos mais cobiçados e lucrativos cargos para a corrupção política de sempre, como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o Porto de Santos e o Banco do Nordeste, com políticos com a folha corrida de Valdemar Costa Netto, Roberto Jefferson e Ciro Nogueira, expoentes do Centrão.
Bolsonaro parece também nada ter aprendido de negociação política em seus quase 30 anos de mandato parlamentar. Sempre teve uma turma no parlamento disposta a trocar apoio por benefícios. Uma constante desde os estertores da ditadura militar. Paulo Maluf gastou os tubos para montar uma base que se evaporou quando os ventos passaram a soprar para o lado de Tancredo Neves. José Sarney batizou o Centrão em seu governo, com a famosa frase de seu ministro Roberto Cardoso Alves, o Robertão, de que é dando que se recebe. A turma ficou tão mal afamada que foi desprezada por Fernando Collor até que, no desespero diante de uma série de escândalos, resolveu lotear o governo. De nada adiantou na votação da decisiva autorização da Câmara de abertura de seu processo de impeachment.
Fernando Henrique Cardoso fez um acordo no atacado com as cúpulas do PFL e do PMDB e alguns penduricalhos dando-lhes nacos de poder para conseguir aprovar a emenda da reeleição e governar relativamente em paz. Mas pôs uma trava que reduziu o tamanho do estrago dos escândalos de corrupção em seu governo — cada acusado que se defendesse, se não conseguisse, caísse fora. Deu tão certo durante os oito anos de seus dois mandatos que José Dirceu quis reproduzi-lo no primeiro governo Lula. Lula ouviu conselhos errados e mandou Dirceu seguir outro caminho — deu no Mensalão.
Dilma Rousseff assumiu o governo, em 2011, encantada com a vestimenta de faxineira que João Santana criou. Durou pouco. Bateu de frente com protegidos dos esquemas de Lula e do PT. Guardou a roupa no armário e seguiu adiante. Conquistou um segundo mandato na bacia das almas, prometeu coisas na campanha que fez o contrário tão logo assumiu num claro estelionato eleitoral, mas continuou a resistir ao assédio aos cofres do PMDB e do Centrão. Quando ficou claro que o processo de seu impeachment havia deslanchado, cedeu às exigências do Centrão e de uma banda do MDB — todos abocanharam esses nacos de poder — e votaram a favor do seu impeachment.
Como está em seu DNA, o Centrão é um predador, sempre de olho em vantagens presentes e futuras. É especialista na venda do chamado ouro dos tolos, uma pirita dourada, composta por dissulfeto de ferro, que tem aparência de ouro, mas não o seu valor. Bolsonaro está indo às compras por essa suposta pedra preciosa que salvaria seu mandato em caso de processo de impeachment. Pode se decepcionar. A turma cobra à vista, mas em geral não entrega a encomenda combinada.
A conferir.