O vírus que nos apavora

Neste artigo - meio crônica, meio poesia - a autora questiona a identidade do ser humano diante da inusitada tragédia do coronavírus

O vírus nos apavora porque rasgou o véu que esconde a realidade.

O vírus nos apavora porque derrubou o muro que separa uns e outros.

O vírus nos apavora porque nos devora na tocaia.

O vírus nos apavora porque chega sem dizer que chegou, a que horas veio, como veio, o que veio fazer aqui.

O vírus nos apavora porque nos torna iguais.

O vírus nos apavora porque nos mostra iguais: todos nós somos mortais.

De repente, todos nós estamos mortais.

Todos têm razão, inclusive os sem-razão, os que vão e ficam, os que dançam como baratas tontas, os que são atletas e os que nunca puderam ser atletas porque precisaram prover o pão-nosso-de-cada-dia ou porque nunca quiseram ser atletas, preferiram adestrar os miolos, esses mesmos miolos que faltam em certas cabeças de corpos atléticos.

Corpos que escondem o vírus porque atletas não costumam ter vírus, serem iguais aos outros, perderem-se na multidão dos que batem ponto, dos que todo dia precisam ter algo para fazer (comer), “são 6 bocas em nossa casa, Dona, pelo amor de Deus, me dê uma esmola, me dê o direito de faxinar sua casa, compre o pano-de-prato que bordei, olha só que lindo, a Senhora nunca mais vai ver coisa tão bem feita”… e mendigos que rondam a porta de seu carro, de sua casa, de seu sossego.

Agora somos todos mendigos que suplicam por saúde, que se enfiam em suas tocas, grã-finas ou miseráveis – tanto faz. O vírus invade tudo, ronda aqui perto, tenta me tocar, eu que sou idosa e vaidosa e tenho várias comorbidades. O QUE SÃO COMORBIDADES? ALGUÉM FICA IDOSO SEM COMORBIDADES??? E os que morrem jovens, sem comorbidade alguma?

Santiago do Chile – Carkos Vera/Fotos Públicas

Agora tanto faz ser o patrão ou o empregado numa fábrica que fechou, num comércio de alto luxo ou num comércio de rua – desses aonde se compram fantasias de carnaval, que o carnaval acabou ainda há pouco, com suas mulheres nuas ou quase nuas, tocando tambor. Por que as mulheres tocam tambor como na antiga Atenas, celebrando sei-la-quê-festejo pagão, inebriadas de vinho, em orgias com Dionísio?

Quem mandou as mulheres tocarem tambor anunciando a morte? Ou o sexo?

Hordas de famintos vão invadir a propriedade alheia: a propriedade é alheia nessas horas em que todos somos iguais? E se decidirem invadir os hospitais particulares, aqueles aonde foi Lula, foi Dilma, foi o Capitão-bão-ba-lão-bão-bão? E se o SUS não conseguir conter a horda de desesperados, aqueles que precisam trabalhar e os que deles precisam para trabalhar, nestas horas todos somos trabalhadores, tanto faz qual o lugar que ocupamos nas empresas, se tocando o trator, montando o cavalo, se representando o patrão como mestres-de-obras, se operários caindo da construção, se engravatados banqueiros, se deputados, senadores ou sei-lá-que riqueza possuo eu. Possuem minhas mulheres ou meus homens, que também os coleciono como eles, todos agora são iguais, todos somos iguais… todos morremos iguais…

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