Cartas na mesa. Esse Congresso Nacional não caiu do céu. Ali ninguém foi apontado por alguma entidade sobrenatural. Todos os congressistas foram eleitos na mesma ocasião e pelo mesmo processo pelo qual Jair Bolsonaro foi sufragado presidente da República, ressalvado um terço do Senado Federal, que foi escolhido, também pelo voto direto, universal e secreto, em outubro de 2014.
Não se diga, portanto, que são “velhos políticos”. Não. Estão, agora, iniciando o segundo ano de mandato de uma legislatura que só se encerrará em janeiro de 2023.
No Senado Federal, das 54 cadeiras em disputa, no último pleito, apenas oito acabaram sendo ocupadas por senadores que buscavam a reeleição. Na Câmara dos Deputados, 53,4% das cadeiras foram ocupadas por novos parlamentares, eleitos em outubro de 2018, na mesma data do primeiro turno da eleição presidencial, da qual Jair Bolsonaro saiu-se vencedor. Essa renovação superou a de 2014 (46,7%) e de 2010 (44,25%). Trata-se, portanto, de um Congresso Nacional “novinho em folha”.
É, pois, uma falácia, dizer que políticos carcomidos impedem Bolsonaro de governar. O problema é outro. Deixando de lado a discussão sobre inépcia e desídia, Bolsonaro não consegue governar porque não goza de um elemento fundamental de governança: sólida base parlamentar.
A questão de fundo é: como pode o Poder Executivo contar com uma maioria congressual fiel, que lhe permita implementar um programa de governo, sem que, a cada período legislativo, se reedite uma nova coalizão de conveniência para sustentar as políticas do presidente da República?
A Presidência da República é o único cargo eletivo, cuja circunscrição eleitoral é todo o território nacional. Deputados federais e senadores são escolhidos em circunscrições estaduais (incluindo-se o Distrito Federal).
Isso explica as disputas por um lugar na poderosa Comissão Mista de Orçamentos do Congresso Nacional. Como bem assinalou, neste mesmo sítio, Os Divergentes, há poucos dias, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, a agenda dos congressistas, “com poucas exceções, está voltada para reivindicações de sua aldeia ou, no máximo, corporativas ligadas a interesses de grupos como agricultores, professores, servidores públicos, entre outros”. E concluiu: “Daí que os interesses da União na partilha dos recursos federais e das responsabilidades dela decorrentes exijam o protagonismo forte do Executivo na disputa com os demais entes federativos e as corporações”.
Quem se elege para o cargo de presidente da República deve ter a obrigação de olhar para o Brasil como um todo e em todos os aspectos, ao formular sua ação governamental. O chefe do Poder Executivo, que, no presidencialismo, é também chefe de Estado, precisa, pois, ser capaz de discernir, em meio a um cipoal de lobbies, os interesses nacionais; ser ativo na cena política e dotado de carisma e perspicácia para balancear reivindicações e pressões as mais diversas, muitas vezes conflitantes entre si. Necessita, enfim, dominar a arte da política.
Infelizmente, o atual presidente da República não se enquadra nesse perfil: governa com os olhos voltados para a sua “aldeia”, as forças de segurança, e para alguns poucos grupos de empresários do setor exportador de commodities, além do mundo financeiro, é claro.
Superar essa dificuldade exige uma reengenharia, cuja viabilidade requer vontade política de largo espectro e algum tempo de maturação. A legitimação carismática é importante, mas não basta.
Mitos são representações fantasiosas; carecem de realidade. E realidade só se apreende coletivamente.
É preciso, antes de mais nada, que os que pretendem governar tenham programas abrangentes e articulados; e que esses programas sejam compartilhados por uma maioria parlamentar consistente. E que, ainda, sejam sustentados por militâncias partidárias conscientes.
Repito: conscientes, e não manipuladas digitalmente. Isso pede procedimentos de construção de consensos democráticos, no seio de partidos políticos. Como assinalou, há poucos dias, a Ministra Carmen Lúcia, durante um julgamento, esses são imprescindíveis no regime democrático representativo, em que pese toda a onda de desmoralização em que vêm naufragando.
Dizia o filósofo Umberto Cerroni − que também os considerava vitais − que partidos políticos, se democráticos, devem vivenciar, no seu dia a dia, o projeto universal que desejam implementar nas sociedades em que se manifestam. E aceitar que outros projetos possam ser articulados concomitantemente. Por suposto, devem deixar de ser meras legendas, em que se acomodam políticos interessados em satisfazer apenas as demandas de suas aldeias.
Que fazer?
Antes que me acusem de “esquerdopata”, socorro-me de agentes políticos que se projetaram em pleno regime militar para buscar soluções para esse quadro de disfuncionalidades do presidencialismo brasileiro. Um foi ministro do STF e chefe da Casa Civil por duas vezes; o outro se destacou, primeiramente, como xerife da Receita Federal. Falo de Leitão de Abreu e Francisco Dornelles.
Leitão de Abreu foi quem, em 1982, criou a vinculação de votos. Quem não votasse, à época, de cabo a rabo, no mesmo partido (de governador a vereador), anulava o seu voto. Resultado: até mesmo Leonel Brizola, eleito governador naquele ano, conseguiu dispor, com seu PDT, de sólida maioria parlamentar para administrar o Rio de Janeiro. O segundo propôs, quando era senador, a separação dos pleitos em função das temáticas: eleições federais (presidente da República, senadores e deputados federais) em um ano; dois anos depois, eleições regionais (governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores).
Mitigando-se a proposta de Leitão de Abreu, com vinculação, tão-somente, dos votos para a Câmara dos Deputados aos conferidos a um candidato à Presidência do mesmo partido ou coligação (restrita a candidaturas majoritárias) e substituindo-se o voto proporcional de lista aberta − esse sedutor convite à fragmentação e ao parlamentarismo de “aldeia” − por lista pré-ordenada (parcial ou integralmente) ou pelo voto proporcional personalizado (voto distrital misto alemão), poderíamos ampliar significativamente as condições de governança de quem viesse a ser eleito presidente da República.
Que, desse modo, seria, ainda, refreado em seus impulsos de “salvador da pátria”, pois a oposição, mesmo que minoritária, também seria forte. Somando-se a isso a separação das eleições, em razão da natureza das questões em jogo, poderíamos ter uma sensível otimização das condições para se governar bem o Brasil.
Cartas na mesa: “verdade, franqueza”, dizia a antiga balada de Moacyr Franco. Como tornar viável um governo democrático? Eis aí um bom início de conversa para quem quer, sinceramente, construir uma ampla frente política digna de respeito e que se imponha como alternativa ao descalabro para o qual o Brasil caminha.
Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG