O desabafo do ministro Augusto Heleno contra o Congresso – acusado por ele de chantagista e insaciável – revela muito mais que o grave vitupério da autoridade que tem a obrigação da palavra cuidadosa mesmo nos julgamentos severos.
O que há de mais preocupante na fala do general é a escalada da disputa entre os poderes Executivo e Legislativo, na qual já se conhece um perdedor: o Brasil.
O papel do parlamentar
A vocação do Congresso é, por natureza, federalista, e, mais que federalista, municipalista. Deputados e senadores não são eleitos pela União, são representantes dos estados, e não só dos estados, dos municípios, onde dependem de apoio dos prefeitos e de lealdades locais.
A agenda dos deputados e senadores, com poucas exceções, está voltada para reivindicações de sua aldeia ou, no máximo, corporativas ligadas a interesses de grupos como agricultores, professores, servidores públicos, entre outros. Daí que os interesses da União na partilha dos recursos federais e das responsabilidades dela decorrentes exijam o protagonismo forte do Executivo na disputa com os demais entes federativos e as corporações.
A batalha recente em torno do orçamento impositivo reduz drasticamente a capacidade da União e, portanto, do Executivo de arbitrar discricionariamente os desajustes regionais, sociais e os demais desequilíbrios próprios de uma nação marcada pelas desigualdades.
O governo do presidente Bolsonaro colhe a tempestade dos ventos semeados no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, quando o Congresso foi estimulado a encurralar o Poder Executivo como parte da estratégia oposicionista contra o mandato da governante deposta. O Parlamento tomou gosto pelo empoderamento estimulado e agora tira proveito da inaptidão e desorientação do atual Executivo na relação com o mundo da política, no qual os amadores, mais cedo ou mais tarde, inapelavelmente naufragam.
Guerra de guerrilhas
É desalentador que, diante de uma agenda que inclui temas de grande relevância para a União, como as reformas Tributária e Administrativa, o Executivo tenha como estratégia a tentativa de intimidação do Legislativo.
Aliás, em um governo cheio de militares não custa lembrar o princípio segundo o qual na guerra de guerrilhas estas não precisam triunfar contra um exército regular. A vitória da guerrilha consiste em sobreviver, em não se deixar esmagar.
Os estrategistas do Planalto devem considerar que é o governo que precisa aprovar os seus projetos e reunir maioria para tal propósito. O Congresso não precisa derrotar tais projetos. Não votar, a qualquer pretexto, já seria um fracasso do governo. A disputa em torno da responsabilidade pelo insucesso dificilmente excluiria um dos protagonistas.
Registre-se que, apesar das demonstrações recorrentes de desapreço de integrantes do governo pela política e pelo Parlamento, os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado Federal, Davi Alcolumbre, têm concorrido com várias demonstrações de boa vontade para uma correta e cooperativa relação do Congresso com o Executivo em torno de uma pauta de temas de interesses comuns, principalmente aqueles ligados às aspirações do mercado.
Mirem-se em Ciro, o Grande
O presidente Bolsonaro faria bem em observar outra lição oferecida pelo imperador persa Ciro, o Grande, e descrita mais uma vez pelo historiador grego Heródoto em sua obra História, aqui já citada em artigo anterior.
Conta Heródoto que depois da conquista da Lídia, Ciro recebeu mensageiros dos Jônios e Eólios, povos tributários do país conquistado, que reivindicavam ser acolhidos como súditos do imperador persa nas mesmas condições em que o foram de Creso, o rei derrotado da Lídia.
Ciro respondeu com o apólogo que narra a história de um tocador de flauta que imaginou atrair os peixes do mar à terra tocando seu instrumento. Vendo frustrado seu intento, lança então uma rede ao mar, apanhando uma grande quantidade de peixes que deposita no chão, e vendo-os então saltar, disse: cessai, cessai agora de dançar, peixes, pois não quisestes vir a mim ao som da minha flauta.
Deu essa resposta aos Jônios e Eólios, pois tendo concitado os primeiros a segui-lo não foi ouvido, e só agora via-os dispostos a obedecer no momento de graves dificuldades.
O governo faz ouvidos moucos aos flautistas do Congresso. Qualquer dia poderá ser surpreendido pelo baque da rede na água em lugar do som mavioso da flauta. E aí será tarde para dançar.