Interessante como a sociedade se movimenta para adequar-se aos novos padrões de comportamento e inovação do chamado mundo moderno. Diariamente em todo momento e praticamente em todos os lugares vemos costumes que passaram a existir e tornaram-se coisa comum sem nem bem nos apercebermos. Exemplo disto são as transações comerciais com os cartões de crédito. O dinheiro digital, virtual, até pouco tempo atrás chamado de dinheiro de plástico.
Não faz muito, os cartões de crédito eram primazia de uma camada da sociedade, digamos mais bem favorecida, com capacidade de compra maior que as pessoas de baixa renda. As transações financeiras com venda e pagamento por meio dessa modalidade da economia só eram feitas nos grandes magazines, nas lojas de departamentos, shoppings, aeroportos etc. Era sofisticação para poucos. Agora não. Os cartões de crédito e débito romperam essa barreira. De tal modo que qualquer produto pode ser adquirido sem nenhuma complicação, mesmo que você não tenha dinheiro vivo, papel moeda, no bolso.
Estou diariamente na chamada seara do poder, no Congresso, no Palácio do Planalto, nos ministérios. Ouço dicursos, palestras, entrevistas de grandes nomes do pensamento e negócios discorrerem sobre economia formal. Sobre captação de recursos, juros, isenções, superfaturamento, super lucros, remessa de divisas… Mas, em período de pré-carnaval, em dia de jogo do Flamengo, fui às ruas para fotografar o movimento de foliões e torcedores. Encontrei algo bem mais objetivo e simples: vendedores ambulantes indo à luta para sobreviverem sem a dependência direta do Estado, driblando a falta de emprego.
E o interessante está justamente nas tais maquininhas de cartão de crédito, débito e pick-pay que proliferaram para tornar sem muitos salamaleques a venda e compra de produtos os mais baratinhos, de baixo custo: lanches, algodão doce, churrasquinho, água mineral, picolé, pipoca, biscoito, camisa de time, cerveja, refrigerante, pirulito, paçoquinha. Tudo. O papel moeda praticamente morreu.
Exemplo disto é a viúva Maria Mariana, de 37 anos, três filhos. Trocou o emprego em um hospital de Brasília para tentar melhor rendimento com seus três carrinhos de vender sorvetes e outro de pipoca. Se o tempo estiver firme, o sol a pino, a cidade cheia de turistas e os pais resolveram passear com os filhos seu complexo comercial pode lhe render até 600 reais por dia. Diz que 70 por cento de seus negócios só são possíveis por conta dos cartões. Sente-se segura por várias razões. Primeiro, porque o valor estará depositado em sua conta bancária no dia seguinte. Em segundo lugar, por não correr o risco de ser assaltada ao estar com grana viva na bolsa.
E olha que para aumentar suas vendas, Maria Mariana está pensando numa maneira de parcelar as compras para sua clientela. Ainda que um saquinho de pipoca custe apenas 2 reais. Diz que são as vantagens e liberdade da tal economia informal.
Luís Carlos e sua mulher vendem churrasquinho numa barraquinha que montam nas cercanias de eventos esportivos. Não têm ponto fixo. É itinerante, loja sem endereço estabelecido. Se há jogo do Vasco, Corínthians ou qualquer outro time veste a camisa do clube e atrai os torcedores transeuntes. Mas o segredo de seu negócio é possibilitar que seus clientes paguem com dinheiro virtual. Descobriu que as pessoas, de posse de um desses cartões, sentem-se com maior poder de compra. Esquecem-se dos limites do dinheiro em papel moeda que está no bolso. E, em consequência, consomem mais.
História curiosa também conta outro vendedor ambulante que fixou seu comércio informal na venda de churros, algodão doce e água mineral num parque de diversões. Deixou de exigir o recebimento na venda de seus produtos exclusivamente em dinheiro vivo. Descobriu que a maioria dos comprantes indagava se ele aceitava cartão eletrônico. Não teve dúvida. Mudou. Inovou. Adotou a modernidade e triplicou suas transações ao contratar maquininhas de três bandeiras de instituições provedoras do serviço.
Cheguei ao estacionamento e assim que liguei o motor do carro, o flanelinha acercou-se para cobrar pelo cuidado que teve com meu automóvel enquanto eu fotografava as cenas de rua. Reparei que não tinha os dois reais, quantia que em geral custa esse trabalho. Ao perceber que eu poderia ir-me sem pagar-lhe, sorridente, sacou a maquinha de cartão de débito. Fácil e cômoda solução.
Caucula-se há cadastrados no Banco Central do Brasil mais de 100 milhões desses cartõezinhos. As transações financeiras com eles chegam a 500 bilhões de reais por ano.
O receio de todos os personagens com os qual falei, porém, é que o governo invente uma maneira de tributar seus micro-negócios com impostos.
As transações com cartões de plástico são, enfim, fato em práticamente todos os países capitalistas, de economia livre, de mercado. No Brasil, de Norte a Sul, Leste a Oeste. Do Chuí ao Oiapoque. Da fronteira com o Paraguai ao litoral atlântico.
Aliás, dia desses um amigo que mora no Rio, ligou-me para contar que estava em um restaurante na Orla de Copacabana quando um rapaz pediu-lhe alguma ajuda, uns trocados. Respondeu que não tinha dinheiro no bolso. Foi quando, então, o necessitado morador de rua sacou de sua maquininha de cartão e disse-lhe:
— Não é problema! Contribua comigo utilizando o aplicativo do pick-pay.
Pick-pay é aquela modalidade de negócio em que o valor cai direto na conta de quem recebe sem nenhuma burocracia.
Já de volta para casa — após ver de perto esse novo mundo de milhões de maquininhas de cartão de crédito — pus-me a lembrar de quando eu era um adolescente no curso ginasial do Colégio Dom Bosco. O professor passou como lição a leitura de um livro do filósofo jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin. E mestre Chardin dizia a certa altura:
— Deixe o mundo que ele vai por si só.
É… Pode ser. Não sei… Teilhard de Chardin pensava como seria integrar a sociedade com o evoluir dos tempos. Nasceu em 1881 e faleceu em 1955, quando o processo digital nem era um sonho. A Internet e os algoritmos menos ainda. Smarts cards então nem pensar.
Orlando Brito