O fascínio que exerce o direito norte-americano, atualmente, sobre membros de nossa Judicatura, do Ministério Público e aspirantes a essas instituições é notório. Há, no entanto, elementos que compõem o sistema judicial dos EUA que, por ignorância ou má-fé, são omitidos quando se tecem loas à jurisdição daquela nação tão admirada nos círculos jurídicos nacionais. Prefiro, ainda, acreditar que seja por ignorância, considerado o nível sofrível do ensino jurídico no Brasil.
A propósito, acabo de ler que um turista ucraniano foi preso em flagrante, no final do ano passado, no Rio de Janeiro. Apresentado, em seguida, a uma juíza em audiência de custódia, esta, por seu turno, solicitou a interveniência de intérprete oficial da “União Soviética” (sic). Informada, posteriormente, do fim da URSS, há algumas décadas, expediu o mesmo pedido às autoridades consulares russas!
Pelo visto, Sua Excelência jamais deve ter ouvido falar, nos bancos escolares, dos mais de um milhão de camponeses ucranianos mortos de fome, nos anos 30 do século passado, quando ainda havia União Soviética; tampouco ficou sabendo da anexação, pela Rússia, da Crimeia − considerada território ucraniano pela comunidade internacional −, há pouco mais de cinco anos. Desnecessário dizer que a ilustre magistrada devia ignorar que na Ucrânia fala-se ucraniano, e não russo.
Coisas de nossas faculdades de direito e dos cursinhos preparatórios para concursos. “Aquele que só sabe o direito, nem o direito sabe”, dizia o Justice Oliver W. Holmes Jr. E já que o negócio é copiar o que ditam os norte-americanos, talvez seja recomendável a pretendentes de operadores do direito no Brasil a leitura de “O Primeiro Ano”, do genial Scott Turow, sobre sua experiência como calouro em Harvard.
Mas, voltando aos EUA, um bom exemplo da assimilação filtrada de suas instituições por nossas autoridades judiciais pode ser trazido à baila no contexto dos debates sobre a adoção dos juizados de garantia. Bobagem dizer que isso existe na Itália, em Portugal ou outros países latino-americanos; bobagem dizer que já há experiência exitosa nesse sentido no Estado de São Paulo.
O que importa saber é se esse tal de juizado de garantia funciona nos EUA. Talvez não tenha sido ensinado aos doutores da lei: trata-se de um interessante elemento da engrenagem judicial norte-americana, que existe desde a adoção da famosa Quinta Emenda do “Bill of Rights”, em 1791.
O juizado de garantias é praticado desde aquela época, nos EUA, de uma maneira muito peculiar. É conhecido entre eles como “grand jury”. De acordo com a Quinta Emenda, ressalvados os casos submetidos à competência de cortes marciais, nenhum processo criminal, em casos de delitos infamantes (corrupção, por exemplo) ou crime capital (pena de morte), pode ser aberto sem que, antes, um corpo soberano de jurados, decida, por maioria qualificada (2/3 ou 3/4 de seus membros, conforme o Estado), se o Ministério Público dispõe ou não de indícios razoáveis de materialidade e autoria, regularmente coligidos, para oferecer uma denúncia, que, posteriormente, será processada e julgada perante um juízo.
Não há sequer um magistrado a supervisionar o trabalho dos jurados, embora o órgão conte com apoio técnico de pessoal do Poder Judiciário. O curioso é que os norte-americanos não discutiam se haveria ou não dinheiro bastante para instalar “grand juries” nas comarcas de todos os Estados. Simplesmente os instalavam, em que pese terem sido os EUA, naquela ocasião, uma nação nascente, sem pujança econômica alguma e saída, fazia pouco, de uma terrível guerra de independência que durara mais de oito anos e que só havia terminado com a assinatura do Tratado de Paris, em 1783.
Mesmo após a devastadora guerra contra o Reino Unido, em 1812, na qual a capital Washington foi totalmente incendiada e a incipiente economia norte-americana arruinada, ninguém ousou pôr em dúvida a legitimidade do “grand jury” como garantia fundamental dos cidadãos contra a persecução estatal. Ninguém quis impedir o funcionamento desse juizado de garantia antes, durante ou depois da Guerra de Secessão, finda em 1865, deixando para trás muita destruição e mais de seiscentos mil mortos. E olha que o erário arcou, desde sempre, com as despesas de manutenção dos jurados, cidadãos comuns, enquanto estes estão convocados e no exercício de suas funções – que podem durar meses − num “grand jury”.
“O juizado de garantias é praticado desde aquela época,
nos EUA, de uma maneira muito peculiar.
É conhecido entre eles como “grand jury”.”
Não nos daríamos ao luxo de dispor de jurados por meses, mas, se a questão que impede, entre nós, a instalação de juizados de garantia é realmente de natureza orçamentária, não seria conveniente passar um pente fino nos gastos do Poder Judiciário, especialmente no que diz respeito a remunerações de magistrados? Até quando suportaremos conviver com a ampla, geral e inconstitucional extrapolação do teto remuneratório de R$ 39.200?
Vale lembrar que gastamos 2% de nosso PIB com a manutenção do Poder Judiciário. A média nos países da OCDE é 0,5% e, na União Europeia, nenhum país gasta mais do 0,7% do PIB com sua respectiva judicatura. Do montante destinado entre nós ao Poder Judiciário, 90% são destinados a pagamento de pessoal. Na Europa, 70%.
Se ativéssemo-nos, efetivamente, à remuneração máxima “permitida”, isso já daria para pôr em funcionamento muitos juizados de garantia país afora.
Em recente conversa com uma jurista alemã, residente em Berlim, − cujo país gasta apenas 0,3% do PIB para manter seu Poder Judiciário − recebo a informação de que, atualmente, a remuneração de ingresso na carreira da magistratura na capital germânica é de cerca de € 4.000 (bruto), o que, ao câmbio atual equivaleria a aproximadamente R$ 18.400. No final de carreira, um juiz berlinense ganha € 7.000 (bruto), ou R$ 32.200. Importa recordar que, com base na progressividade tributária, chega-se lá à alíquota de 45% no imposto de renda e que, evidentemente, os magistrados não se desvencilham desse tributo. Que tal?
Os que, aqui, na Magistratura, lançam uma cortina de fumaça quando falam em gastos excessivos para refugar a implantação do juizado de garantias, não querem, na verdade, abrir mão de autocráticas prerrogativas que lhes confere o nosso arcaico processo penal inquisitório, coisa que, aliás, não existe nos EUA.
Diria Noel Rosa: eis aí “o xis do problema”.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG