Estados europeus que são regidos por sistemas parlamentaristas de governo passam, atualmente, por severas crises de governança. Têm tido dificuldades em formar maiorias. E maiorias formais não têm sido garantia de aprovação de propostas governamentais. Os exemplos são tantos que é melhor dizer que a praga da dificuldade para governar espalha-se como a Peste Negra que recobriu a Europa em meados do século XIV.
Mas países que adotam o sistema presidencialista de governo também atravessam ou atravessaram, recentemente, turbulências gravíssimas. Nos EUA, berço do presidencialismo, a Câmara dos Deputados avança com o processo de “impeachment” do presidente Donald Trump, acusado de abuso de poder e obstrução da atividade congressual.
Vale lembrar que Trump, assim como George W. Bush − em sua primeira eleição −, perderam para seus respectivos adversários no voto popular. Foram guindados ao cargo presidencial graças a um anacrônico colégio eleitoral.
O semipresidencialismo se espraia
A América Latina, região onde o presidencialismo viceja de cabo a rabo, é um amplo cenário de distúrbios preocupantes. Nem mesmo o Peru, país que, fugindo ao padrão latino-americano, se orienta por um sistema de governo que se pode rotular de semipresidencialismo, escapa das agitações.
E por falar em semipresidencialismo, a França parece mergulhar no caos das manifestações dos “coletes amarelos” e das paralisações de servidores públicos, mesmo dispondo o governo de sólida maioria parlamentar. No caso de Portugal, também semipresidencialista, um governo de minoria segue aos trancos e barrancos, equilibrando-se numa tal de “geringonça”, vale dizer, na mera tolerância de partidos situados, no espectro ideológico, à esquerda do governo socialista de Antonio Costa.
Assim, assistimos − parafraseando o que Freud escrevera no intervalo entre as duas guerras mundiais, frente ao avanço de regimes totalitários − a um “mal-estar da civilização”. Mal-estar que não pode ser atribuído a meras disfuncionalidades dos sistemas de governo. O problema parece ser mais profundo.
“As pessoas estão frustradas e tomadas pelo medo ante as incertezas do futuro. Incapazes de dialogar, de tolerar e respeitar o que é diferente, só se sentem seguras no meio de suas tribos, venerando os seus totens”.
Coloca-se em xeque a própria essência do regime político dominante desde a queda do muro de Berlim: a democracia representativa liberal. A crise, portanto, seria de legitimação das autoridades. Uma crise de governabilidade. As pessoas estão frustradas e tomadas pelo medo ante as incertezas do futuro. Incapazes de dialogar, de tolerar e respeitar o que é diferente, só se sentem seguras no meio de suas tribos, venerando os seus totens.
A resistência da democracia representativa
Por sua vez, a democracia representativa, como pano de fundo, se faz incapaz, face a tanta fragmentação e sectarismo, de dar vazão a diretrizes que se qualifiquem como frutos maduros de um processo discursivo efetivamente democrático.
No caso brasileiro, eventual crise de governabilidade pode incrementar um desdém pela democracia representativa e um desprezo pelo ideário republicano. A romântica propaganda, ora em curso, de retorno à monarquia, disseminada por setores ultraconservadores, tem por objetivo minar as bases do republicanismo e do regime democrático, para que prevaleça um chefe de Estado irresponsável politicamente, vitalício e sucedido pelo critério da hereditariedade.
A volta do poder moderador?
Que fique, porém, bem claro: nosso Império nunca bebeu nas fontes do parlamentarismo europeu, engendrado sob a égide da forma de governo monárquico-constitucionalista. Entre nós, erigiu-se um “poder moderador” do agente reinante como “a chave de toda a organização política” (art. 98 da outorgada Carta Política de 1824).
A questão que não quer calar é saber a que se destinaria tal chefe de Estado imperial. O economista liberal Mário Henrique Simonsen, ex-ministro de Estado nos governos militares dos generais Geisel e Figueiredo, defendeu a volta da monarquia, no plebiscito de 1993, porque entendia que o Brasil precisava de estabilidade para sua economia se desenvolver e que nunca fomos tão estáveis como durante o período do Império.
Se, no ritmo em que as coisas caminham, com supressão de direitos a toda hora, a torto e a direito, um “czar da economia” qualquer (“czar”, aliás, deriva de “césar”) começar a falar em monarquia, podemos começar a nos preparar. Talvez uma das primeiras medidas de um novo imperador venha a ser a revogação da Lei Áurea, para que nossa economia possa contar com mais estabilidade para se desenvolver. A estabilidade dos grilhões para os afrodescendentes; a estabilidade da paz derradeira que, enfim, vai redimir os povos originários.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG