Uma das primeiras medidas tomadas pela ditadura militar foi acabar com a possibilidade de aquisição de estabilidade no emprego após dez anos de prestação de serviços ao mesmo empregador, conforme previa a CLT. Poucos chegavam lá, mas, em comparação com os dias de hoje, até que se vivia, nos anos 50 do século passado, razoavelmente a esperança dessa estabilidade.
Primeiro, porque havia uma indução à oferta de empregos por meio da industrialização e dos investimentos em infraestrutura. A acumulação de capital não ficava prejudicada, frente ao incremento do número de trabalhadores estabilizados, porque o deslocamento para as cidades de grandes contingentes de populações rurais, tangidas pelo latifúndio, cuidava de rebaixar o valor dos salários da massa trabalhadora em geral, essencialmente de baixa qualificação.
Segundo, porque a conjuntura, tendente a tornar a questão social cada vez menos “questão de polícia”, como nos tempos da República Velha, estava levando a que a Justiça do Trabalho passasse a reconhecer que certos comportamentos patronais apenas visavam impedir a aquisição da estabilidade. E muitos disso se valeram, adquirindo a estabilidade a partir de nove anos de serviço ao mesmo empregador.
No Rio Grande do Sul, Estado considerado politicamente mais avançado naquele tempo, o TRT chegou a reconhecer um caso de “dispensa obstativa de aquisição de estabilidade” num processo em que o empregador despedira o empregado após oito anos e meio de serviços prestados. Bons tempos aqueles…
A estabilidade celetista ruiu em 1966 com a previsão, por ocasião da admissão, da “opção” pelo FGTS. Quem não optasse, não era contratado.
As autoridades haviam percebido que o surto grevista de 1953 se dera exatamente após o cumprimento do decênio necessário à aquisição de estabilidade, desde que a CLT havia sido instituída, em 1943. Atacava-se esse mal pela raiz.
O FGTS, ademais, também resolvia outro problema patronal com o sistema anterior. É que, antes, verificada a estabilidade e surgindo uma incompatibilidade intransponível entre o empregado estável e seu empregador, poderia a Justiça converter a estabilidade em indenização, permitindo-se que o empregador pagasse uma compensação equivalente ao dobro de uma remuneração mensal por ano trabalhado.
Livrava-se do trabalhador impertinente, mas dispendia-se muito dinheiro em uma só tacada! Sob o regime do FGTS, querendo o empregador demitir, mesmo depois de dez anos de serviços prestados, pagar-se-ia, apenas uma multa, de 10% sobre o montante recolhido a partir do depósito mensal de 8% da remuneração do trabalhador, facultando-se ao demitido o saque de toda a quantia depositada. Uma situação mais módica para o patronato, evidentemente.
Sendo uma poupança forçada, o FGTS impulsionava ainda a roda da economia gerando emprego para o trabalhador na construção civil (indústria imobiliária e saneamento básico) e dando aos assalariados em geral, especialmente os de classe média, condições de financiamento da casa própria. Novos tempos: mentes brilhantes dedicadas a arrancar o couro dos que viviam da venda de sua força de trabalho. Tempos de Otávio Bulhões, Roberto Campos, e, pouco mais tarde, do “gordinho sinistro”, Delfim Netto.
Se há um consenso entre os que criticam os governos petistas, esse consenso é o de que Lula e Dilma estimularam o consumismo, através de suas políticas de subsídios numa ponta e de ampliação das linhas de crédito na outra. Subsídio para o patrão e crédito para o trabalhador adquirir bens: daí, porque, Lula, repetindo Getúlio Vargas, foi pai dos pobres e mãe dos ricos.
Nesse tempo do capitão-mor e de capitanias hereditárias, a sutileza dos mecanismos para empolgar o mercado a qualquer preço vem criar nova sistemática do FGTS. Tremenda crueldade: de um lado, porque acende em consumistas cevados o desejo de gastar o que teriam, dando-lhes um 14o salário: agora, quinhentos reais para todo mundo; depois, um saque escalonado, conforme a poupança no FGTS de cada um, no dia do seu aniversário.
Fino presente! Ou se pagam dívidas sufocantes com esse dinheirinho ou se aprofunda o endividamento para gáudio e festa do sistema financeiro, adquirindo o trabalhador um novo smartphone ou um novíssimo smartphone ou, quem sabe, um tênis “All Star”, pisante outra vez “fashion”.
Quem vencer todas essas tentações passa a ter outra constantemente gritada aos seus ouvidos: tire o que pode e aplique para ter rendimento maior em outro investimento financeiro, já que a remuneração do FGTS é irrisória. Uai! De repente, se veem milhares de brasileiros e brasileiras querendo saber qual a melhor aplicação, qual lhe dará melhor retorno.
O capitão-mor, afinal, conseguiu servir mais ainda aos que ele supõe sejam seus serviçais: os trabalhadores brasileiros vão virar rentistas e assim melhor servir aos banqueiros.
Grande projeto, posto Ipiranga! Viva o mercado financeiro!
* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMG