Por mais devaneios anteriores com sua marca registrada, Jair Bolsonaro surtou diferente nessa sexta-feira. Acordou de pá virada, disposto a bater todos os recordes de tiros no próprio pé de antecessores tidos como imbatíveis no Complexo de Centopeia. Antes mesmo do café da manhã com correspondentes estrangeiros, ele já produzia baboseiras. Falou tanta besteira que acabou flagrado pelas próprias câmeras supostamente a seu serviço.
No que seria apenas mais uma de suas engraçadinhas inconveniências para o público interno, vazou seu comentário preconceituoso sobre o governador Flávio Dino, do Maranhão. Deu de bandeja um forte e justo argumento para a nota de censura dos governadores de Nordeste. Não parou por aí.
Na entrevista aos correspondentes estrangeiros, Bolsonaro negou, por exemplo, que tenha brasileiros passando fome. Os dados oficiais registram que cinco milhões de brasileiros continuam passando fome, um absurdo num país que é celeiro mundial de comida. Por mais que hoje viva na bolha de presidente da República, é impossível que não enxergue o que acontece nas ruas. Rola ali parte da miséria, a visível. Ele fez depois uma correção meia boca, soou meio falsa. Antes tivesse ficado calado.
Ainda nesse quesito, digamos, social, Bolsonaro criticou o pagamento da multa de 40% do FGTS para as demissões sem justa causa. Diz ele que isso é um ônus para a iniciativa privada, desestimula ser empresário no Brasil. Um argumento na boca de quem sempre teve o salário garantido, mesmo quando os seus chefes reprovaram sua conduta, que soa como escárnio para quem perde o emprego, de uma hora para outra, sem nenhuma justificativa. Alguém teve o bom senso de soprar no ouvido dele o tamanho dessa besteira. Uma nota oficial registrou o recuo.
Mesmo assim foi em frente. O surto seguinte teve como alvo a indústria do cinema no Brasil. Em uma cena constrangedora, Bolsonaro reafirmou seu incômodo, seja lá por qual razão, com o filme Bruna Surfistinha, estrelado por Deborah Secco, tempos atrás. Disse isso, entre outras ameaças ao apoio público ao cinema brasileiro, com o hoje ministro responsável pela área, Osmar Terra, fazendo cara de paisagem.
Na mesma balada, Bolsonaro anunciou uma mudança na composição, geografia e critérios de decisão da Ancine, a agência nacional de cinema. Ou aceita seu “filtro” ou ela será fechada.Trata-se, além do valor cultural, de uma indústria que dá emprego para cerca de 300 mil pessoas. Diz querer filmes sobre heróis nacionais — o único herói que ele proclamou publicamente foi o coronel Brilhante Ustra, de triste memória por tantos mortos e torturados quando comandou o Doi-Codi em São Paulo.
Bolsonaro deu essa enquadrada na Ancine, dizendo inclusive que pode remove-la para outros ministérios, fora do comando de Osmar Terra, que parecia visivelmente constrangido. Osmar sempre se orgulhou de sua atuação no movimento estudantil contra a ditadura militar na década de 60.
Em meio a tantos contrabandos de memória, Bolsonaro ainda teve a cara de pau de negar que Miriam Leitão, grávida, tenha sido torturada no auge da ditadura militar. O mínimo que se espera é que esse surto presidencial seja passageiro.
A conferir.