Salto alto e saia justa. É isto que deve embaraçar os passos do vice-presidente Hamilton Mourão quando se movimenta pelas salas e antessalas do Palácio do Planalto. Seu discreto gabinete, no Anexo, dia a dia ganha maior proeminência, procurado por políticos e dignitários.
Por mais que se negue, cada vez gera mais temor de mal-entendidos ou da intriga aberta, própria dos ambientes palacianos. Como na “Ária da Calúnia”, da ópera “O Barbeiro de Sevilha”, de Gioachino Rossini, não adianta se postar de frente para deter a intriga e a inveja, que seus efeitos maléficos se infiltram pelas costas.
É visível o mal-estar na assessoria do vice-presidente Mourão. Evita-se o tema delicado. Todos mostram-se preocupados em ratificar as juras de lealdade do vice ao presidente Jair Bolsonaro, refutando qualquer insinuação de que o general esteja olhando para a cadeira do capitão.
Entretanto, não obstante o incômodo alegado, a cada dia a imagem do vice-presidente se consolida e se expande. O que pega bem para fora dos portões do Planalto, dentro é um constrangimento.
É a sina dos vice-presidente brasileiros. Se não foram muitos, vários conspiraram ou deram livre curso a movimentos para destituir o titular, cobiçando o lugar. Na República Velha, só Prudente de Morais teve problemas nessa área. Depois da redemocratização de 1945 é que se registraram alguns episódios nesse sentido.
O vice-presidente de Getúlio Vargas, o potiguar João Café Filho, originário do PSP de Adhemar de Barros, conspirou abertamente com a UDN de Carlos de Lacerda para derrubar o velho caudilho. Com o suicídio, Café assumiu e levou a antiga oposição para o Palácio do Catete.
A operação foi um fracasso total, pois o governo perdeu fragorosamente a eleição presidencial para o getulista Juscelino Kubitschek, levando à derrota eleitoral de seu candidato tido como imbatível, o general Juarez Távora, herói da política e das lutas armadas, pinta de galã e orador eloquente.
Pior ainda, Café filho acabou derrubado pelo general Henrique Teixeira Lott, enquanto JK acabou recebendo a faixa pelas mãos do então presidente do Senado, o catarinense Nereu Ramos. Já os golpistas aliados do vice amargaram o fim de sua aventura política numa fuga humilhante a bordo do cruzador Almirante Tamandaré.
No regime militar, os vice-presidentes foram pessoas controvertidas, mas nunca ameaçaram efetivamente os generais-presidentes. O primeiro deles, José Maria Alkmin, deputado federal do PDS, ex-ministro da Fazenda de Juscelino e comandante do movimento JK-65, foi o vice de Castello Branco, numa eleição equivocada, pois, enquanto esteve no posto, nunca foi convidado para cerimônias oficiais e também em nenhuma vez assumiu o governo no lugar do presidente.
Depois dele, o vice de Costa e Silva, Pedro Aleixo, outro mineiro, mas vindo da UDN, o partido do governo, assim mesmo não pode assumir, destituído pela Junta Militar que se apossou do poder com o impedimento do ditador constitucional, abatido por um derrame cerebral no meio do mandato.
A partir daí também não houve muita paz. O presidente seguinte, general Emílio Garrastazu Médici, vivia desconfiado de seu vice-presidente, originário da Marinha, almirante Augusto Rademaker Grünewald.
Nos bastidores, dizia-se que o cargo de presidente não deveria ser exclusivo do Exército, mas compartilhado com as outras forças. Com isto se dizia que o marujo Rademaker teria dado ouvido a certos cantos de sereias. Talvez por esses boatos que o próximo general-presidente, Ernesto Geisel, preferiu levar junto com ele outro general do Exército, Adalberto Pereira dos Santos, que nunca incomodou.
João Figueiredo, o último general presidente, também teve arrufos com seu vice, o mineiro Aureliano Chaves, um político profissional e ex-governador, que fez bonito quando Figueiredo licenciou-se para submeter-se a uma cirurgia cardíaca nos Estados Unidos. Na volta, com os ouvidos quentes, Figueiredo afastou-se de Aureliano, que acabou integrando o movimento da Frente Liberal, uma dissidência do partido oficial, que se aliou ao PMDB para derrubar a ditadura e eleger Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral.
O vice seguinte, José Sarney, nunca foi acusado sequer de ter mandado fazer macumba. Já seu sucessor, como vice empoderado, o mineiro Itamar Franco, teve uma conversa com o líder do então PMDB, Ulysses Guimarães, em que concordou com o início de um movimento pelo impeachment de seu presidente o alagoano Fernando Collor.
Marco Maciel e José Alencar, vices de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, tiveram comportamento exemplar. Já Michel Temer, discreto no primeiro mandato, liderou um movimento para derrubar Dilma Rousseff num processo político. Seu governo foi tranquilo, mas mal deixou o palácio e já foi chamado às falas pela Justiça.
Nenhum desses casos serviria para de modelo ou parâmetro para o quadro Jair Bolsonaro/Hamilton Mourão. Atualmente não há lutas subterrâneas entre forças antagônicas dentro ou fora do governo, envolvendo os dois titulares. A diferença entre Jair e Hamilton é só de estilo.
Talvez um caso com alguma similitude, no embate entre generais-presidentes, seja a disputa entre o presidente Deodoro da Fonseca, e seu vice-presidente, Floriano Peixoto, ambos marechais do Exército, mas ideologicamente antagônicos.
A composição da primeira chapa republicana levou em consideração as duas forças que disputavam o poder dentro do Exército. Deodoro era um militar de carreira do “ancien régime”, originário do velho Partido Liberal (republicanos moderados), levado ao poder por um golpe de estado. Seu vice, Floriano, era o representante de um movimento político-ideológico dentro da força terrestre, os positivistas.
Na eleição indireta, o presidente provisório, Deodoro, foi reeleito, e Floriano, seu vice, entrou na chapa representando as forças positivistas. Com isto abriu-se a luta interna nas forças armadas, pois a Marinha, que tinha um poderio bélico invejável, foi escanteada pela suspeita de ser majoritariamente monarquista, o que acabou se confirmando com a Revolta da Armada. Além disso, a chapa militar deixou fora do poder as forças liberais paulistas, que tinham um forte movimento republicano.
Iniciado o governo, Deodoro foi levado às cordas por essas duas forças: de fora das forças armadas, os paulistas queriam participar do poder; de dentro, os militares ideológicos não conseguiram se impor.
Deodoro tentou dar um golpe constitucional, renunciando para derrubar consigo o seu vice-presidente. Pela Constituição, teria de haver nova eleição.
Floriano, no entanto, não acatou a letra da carta magna.
Intitulando-se vice-presidente em exercício, adiou as eleições até o final do mandato, quando, finalmente, teve de entregar o governo a um oligarca paulista, vencedor da eleição direta, o ex-governador da província de São Paulo, Prudente de Morais, primeiro presidente civil. O qual, por sua vez, teve problemas com seu vice… Mas isto é outra história.