Meu pai e minha mãe eram pessoas da paz. Tentavam evitar brigas entre xs filhxs e nem sempre conseguiam, claro. Eu ouvia sempre a frase: “parem de brigar / não briguem”. Nunca ouvi a palavra “revide”.
A mensagem que ficou foi a de que viver em paz é o caminho. Se apanhávamos? Sim, da minha mãe. Dez filhos. “Dona de casa” tradicional para a época. Meu pai não batia.
Meu temperamento inquieto e questionador não me permitiu seguir a mensagem do “viver em paz” ao pé da letra. Mas a lição de que, como pessoa, devo ser promotora da paz, ficou para sempre.
Eu nunca vi uma arma verdadeira. Nunca. Tenho 67 anos e a única arma que vi dentro da nossa casa foi um rifle. Meu irmão, hoje com 80 anos, fazia o “Tiro de Guerra” – Exército obrigatório – e levou o rifle do treinamento pra casa. Lembro de minha mãe protestar.
Foi este o ambiente familiar que vivi, em relação a armas.
Mais tarde, como repórter, um fazendeiro me mostrou a arma em sua cintura. Ele queria intimidar a mim e ao fotógrafo. Eu o entrevistava sobre uma tocaia, em que haviam sido assassinados pequenos agricultores na região de Goiás, hoje Tocantins. Um ano depois, o padre Josimo, orientador espiritual e apoiador social dos pequenos produtores, foi morto. Com arma de fogo. Pelas costas, enquanto subia uma escada.
Também fui vítima de dois assaltos com armas de fogo, dentro de ônibus. Num deles, o criminoso apontou a arma, que penso ter sido uma metralhadora, pra minha cara. Tenho certeza absoluta de que, se eu também tivesse uma arma e o matasse, minha atitude não reduziria a criminalidade e eu seria presa.
Este é o falso argumento utilizado pelos defensores do armamento da população. As pessoas que vivem em ambientes de violência, acham que a arma em casa será a defesa delas. Mentira. O decreto do novo presidente do País manda guardar a arma em local seguro. Se um ataque ocorrer, até que a pessoa busque a arma, já terá sido morta. Ou se conseguir pegar a arma e matar o criminoso, será um assassino. O ato de matar continua sendo crime previsto no Código Penal. Não haverá um “perdão” automático, como se faz supor.
Um país com autorização para cidadãos possuírem armas de fogo é um país de crimes. Não o contrário.
Não é esta a solução. No segundo assalto que sofri, fui atrás do que deve ser feito. Fui à polícia. Fui à empresa de ônibus. Tais assaltos eram – acredito que ainda são – frequentes naquele lugar. A empresa não tomou providências para proteger os motoristas e os passageiros. A policia não criou estratégias de segurança para impedir os frequentes assaltos. Também não me deu resposta ao B.O. ou seja: os sistemas envolvidos não tiveram interesse em conter a criminalidade.
Uma explicação é a de que o Brasil, como sociedade e Estado, não tem a cultura da paz. Existe a cultura do olho por olho, dente por dente. Existe a cultura do revidar. Palavra que nunca ouvi dos meus pais.
Não esperem que eu compreenda esta cultura, agora fortalecida por quem deveria promover a paz em seu país. Por quem autoriza a “defesa do cidadão” pelas próprias mãos para agradecer o apoio dos que fabricam e vendem armas. Dos que matam.
(Márcia Brandão – jornalista e militante em direitos humanos)