Lula tomará posse sem nenhum problema com os militares, com Bolsonaro e mesmo com bolsonaristas extremados. Mas há problemas no front.
Os militares, Exército, Marinha e Aeronáutica, são, na média e no alto escalão, profissionais conscientes de suas funções constitucionais. As polícias em geral seguem seus governadores e se encontram mergulhados no inesgotável trabalho de segurança pública. Com exceção de uns poucos estados nos quais as PMs são reconhecidamente podres, agem na ordem legal e lutam por melhores condições de trabalho.
Bolsonaro é Rei deposto. A derrota deu a medida de um Brasil dividido, é verdade, cuja polarização promovida na desinformação gerada pelo governo e por grupos privados, vai se esvaindo, revelando uma ficção declinante. Nesse sentido, Lula já se beneficia de: 1) um ambiente de esvaziamento da indústria de fake news e de desmascaramento de um grupelho de empresários financiadores de protestos em defesa da intervenção militar ; 2) um clima de desidratação da figura de Jair Bolsonaro, no medida em que amplos setores de militares ( mas também de evangélicos, empresários, comerciantes, etc) encontram-se muito aliviados quanto o que consideravam um presidente (que apoiaram, sim), mais dado a não presidir ou a abdicar cronicamente da autoridade legítima, optando por sarcasmos, posturas impetuosas e desrespeitosas, tumultuando a política, o mercado, a sociedade, para dizer pouco, não merecendo portanto, o mesmo apoio diante do rei posto. Um rei habilíssimo na arte de negociar, compor e satisfazer a todos. A proca disso é que sequer tomou posse e já governa o país.
Milhões de bolsonaristas, por sua vez, vão desinflando em seus ressentimentos revanchistas com a derrota, dividindo-se entre aqueles cuja única ação social é torcer para o governo Lula dar com os burros n’água e outros decepcionados e incrédulos com Lula subindo a rampa para dar sequência à um governo que já teve início.
Quais os dois principais problemas para Bolsonaro e o bolsonarismo e Lula e os lulopetismo?
Da parte de Bolsonaro, a questão é ter algum apoio (e Lula é parte do problema e da solução) pra negociar e evitar processos e a provável prisão. Bolsonaro sabe que não retornará ao poder e que deverá ser responsabilizado por seus atos de improbidade, no mínimo. Entre os bolsonaristas mais exasperados muitos seguirão na extrema direita revigorada no governo Bolsonaro, mas parte significativa cairá na real. O terrorismo somente agrada a psicopatas.
Silas Malafaia e Edir Macedo já debandaram para o lado de Lula. Não se sentindo “fascistas” (o mantra da vez para certos “críticos” apressados), mas afinados com a direita liberal, muitos eleitores de Bolsonaro tenderão a engrossar certa tendência pragmática nesse espectro ideológico um tanto diluído na polarização (falseada), apoiando outras alternativas para os espaços vazios há muito enfraquecidos da direita nacional. Há muitos bons nomes para 2026, como Romeu Zema, Tarcísio de Freitas, por exemplo, os quais lograrão mais protagonismo (e autonomia e em seus governos) diante de um Bolsonaro fora do poder e em plena decadência.
Com Lula o desafio é maior. Agora virou vidraça e já no começo de seu governo balança entre promessas sociais de uma abrangência mais ampla e posturas mais corporativas do agrado da velha guarda. Muitas das escolhas para ministérios recaíram sobre nomes suspeitos ou incompetentes. É o preço dos conchavos e do troca troca. Nesse ambiente o mercado flutua segundo as especulações sobre os impactos na economia mais ou menos sujeita à presença do Estado e às negociatas entre estamentos públicos e privados.
Lula sabe que o impedimento é sempre uma possibilidade. Vai acertar os ponteiros com a tradição do Centrão, a troca de prendas e favores. Sabe também que Lula terá que estar em sintonia com o comando supremo das Forças Armadas, vale dizer, garantindo-lhes uma política de conciliação nacional.
Lula visa, sobretudo, o resgate de sua imagem política, ainda muito enxovalhada. Isso passa por dois fatos futuros imprevisíveis: a) afastar escândalos que o sepultariam e a toda esquerda, do cenário público por muito tempo, alimentando o bolsonarismo e um retorno triunfal da extrema direita (populismo delegativo); b) conseguir excelentes resultados econômicos, numa conjuntura adversa, com impacto positivo nas classes subalternas, de maneira a resgatar e ampliar a sua imagem do protetor do povo, superando o que Vargas conseguiu no século passado.
Os infiéis da balança do governo de Lula estão dados, mais uma vez, via opção pelo mercado nos seus núcleos diretivos: financeiro e do agronegócio, articulados com grandes grupos a eles atrelados. À essas escolhas já conhecidas em suas armadilhas quanto ao que se pode esperae em troca desiguais combinadas(transformismo), como reparação de danos aos trabalhadores, acrescentam-se duas outras iniciativa de resultados, improváveis fora de largos períodos de continuidade e estabilidade políticas.
Uma dessas iniciativas é a anunciada reindustrialização. Não entro na querela sobre essa escolha um tanto na contra-mão (com o que poderá salvar o futuro do país, como indicarei mais adiante) sobre aquela forma de produção capitalista em seu custo e consequências ambientais. Mas ela tomará um tempo de estruturação da parte de empresários, do Estado e das relações internacionais(atualização tecnológica, acelwração de obras de infraestrutura e inúmeros acordos comerciais) que não parece, nos benefícios esperados, alcançar Lula nos dividendos em seu quatros anos de mandato. Ademais, Lula dependerá, ainda, da realidade objetiva da China, hoje tentando retomar os níveis de crescimento, hoje decrescendo.
A outra iniciativa de Lula é a aposta em compatibilizar o grande marechal de campo neoliberal e seus subalternos com os promissores nichos alternativos potenciais para o giro espetacular do Brasil como centro histórico de um novo paradigma ecológico. Ele terá como eixo várias regiões e biomassa, tendo na grande Amazônia a base de uma nova e radical experiência de economia autossustentada, inclusive com aberturas para projetar, por que não, o decrescimento e o pós-extrativismo para os que sonham com saídas do “labirinto capitalista”**.
Aos bolsonaristas, diante da derrota de 2022 e da perspectiva da prisão de Donald Trump – com reflexos nos projetos autocráticos (Hungria, Polônia, Turquia, mas também na Rússia e em outros países), restam as opções: ativa de retomar a propaganda anti-lulista, alternando mentiras e possíveis malogros do governo que ora inicia-se; negativa, de observação e respeito à lei da gravidade no status quo. Escândalos envolvendo o PT e economia estancada garantirão o retorno das forças ultraconservadoras, em condições mais fortalecidas.
Então temos um quadro futuro complicado. A extrema direita dividida entre uma minoria aloprada de golpistas de sempre; um Bolsonaro quase nocauteado, incapaz de formular um estatuto da direita nacional; e uma massa de bolsonaristas contemplativos na torcida do contra.
A direita liberal encontra-se indecisa, melhor, ainda confusa, mesmo cindida, tentando se constituir sob críticas ao apoio ao governo Bolsonaro e à aproximação ao governo da frente petista. Ao mesmo tempo, parte dessa direita liberal tem pretensão de formar uma política própria para 2026. Mas nada será fácil para os setores mais purista desses liberais conservadores, pois de alguma forma Lula já invadiu faz tempo o campo da direita democrática, trazendo-a para o campo do populismo participativo.
Quanto aos lulopetistas deverão estar envolvidos em dar provas de competência na distribuição efetiva de diretos fundamentais aos mais desprotegidos, sob a heteromia de um mercado revolto a quaisquer ensaios de enquadramento fiscal ou limitações outras aos seus interesses acumulativos. O trauma trauma de parte das elites pró-trabalhadores ao transformismo II, o da uma reedição daquele 2002 cujas consequências mais visíveis foram o impeachment de Dilma e o encarceramento de Lula, não se fazem acompanhar de uma crítica mais profunda dos limites do preço pago 2002 e anos seguintes, e a ser pago em 2022 na próxima década, pelos acordos “caracus” com as elites.
As festas de Natal e ano novo desaquecem razoavelmente a panela de pressão. Dentro dela temos um retrato sem retoques de uma democracia sem cultura democrática, vale dizer, com cidadania ativa incipiente e sob um ambiente mundial pleno de adversidades.
Lula terá que ser um mágico para forjar novas pautas internacionais nas quais o Brasil se torne tão imprescindível no agronegócios mais solidário (em face acesso a alimentos para os mais abaixo da pirâmide social) quanto na preservação e exploração sustentável da Amazônia, driblando as leis de bronze do Capital e, sobretudo, os interesses estamentais nos setores público e privado.
Mas o clima é de festas. Que o Natal prenuncie uma sociabilidade mais solidária e menos hipócrita e o ano novo seja de fato um início de ultrapassagem de velhos arcaísmos. Sonhar não paga impostos, com esperança, na igualdade, na fraternidade e sobretudo, na liberdade, pois segundo Hegel, a liberdade tem na felicidade sua prova subjetiva.
– Edmundo Lima de Arruda Jr
**Cf. ACOSTA, Alberto e BRAND, Ulrich. Pós-extrativismo e decrescimento. Saídas do labirinto capitalista. Trad. Tadeu Breda. São Paulo: Elefante, 2018.