Com imodéstia, arrogância e a forte dose da demagogia que o tornam admirável para 51% do colégio eleitoral, o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva declarou à imprensa que exercerá o controle da economia.
Ocupar-se da economia é apenas uma das atribuições do presidente da República. Antes, porém, deverá se preocupar com a defesa e o cumprimento da Constituição de 1988, ignorada em numerosos aspectos à espera de regulamentação.
Vamos aos exemplos. O inciso I, do Art. 7º, coloca entre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que visam a melhoria de suas condições sociais, “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária o sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.
Passados 34 anos, não se conhece o projeto da lei complementar exigido pela Constituição. O vácuo legal é precariamente preenchido pelo Art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), cuja redação limita a proteção do Art. 7º, I, “ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, caput e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de setembro de 1966” (revogada pela Lei nº 8.036, de 11/5/1990). Logo, é amplo o direito de demitir, desde que se pague a indenização.
O presidente Lula integrou a Assembleia Nacional Constituinte. Acredita-se que conhece a Constituição. Não ignora que o dispositivo aguarda regulamentação. Durante o tempo em que exerceu os primeiros dois mandatos, como presidente da República, nenhuma providência adotou no sentido de propor ao Poder Legislativo a mencionada lei complementar. O malogrado Fórum Nacional do Trabalho, por ele criado e instalado em julho de 2003, não se ocupou do relevante assunto. Afinal, proteger o empregado contra despedida arbitrária ou sem justa causa, é o mínimo que se deveria aguardar de quem foi operário e presidente de sindicato de trabalhadores.
“Salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei” e a “proteção (do trabalhador) em face da automação, na forma da lei”, previstos, respectivamente, nos incisos XII e XXVII, do Art. 7º, são duas outras garantias sociais à espera de regulamentação mediante lei ordinária.
Se não deveriam existir como normas de hierarquia constitucional, pouco importa. Ambas pertencem à Constituição que Luís Inácio Lula da Silva discutiu e aprovou, com a bancada do Partido dos Trabalhadores. Conheço integrantes da Assembleia Nacional Constituinte arrependidos do texto populista, demagógico e prolixo que produziram. Agora é tarde. Mais de 100 emendas não conseguiram conduzir a Lei Orgânica da Nação à esfera da realidade.
Para os servidores públicos civis a dívida trintenária consiste na regulamentação dos incisos VI e VII do Art. 37 da Lei Fundamental. O primeiro assegura o direito à livre associação sindical, e o segundo o direito de greve, “exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”.
O número de paralisações de servidores públicos civis retrocedeu nos últimos anos. A falta de lei regulamentadora serviu como fundamento, em decisões judiciais, no sentido da ilegalidade. Resta saber se a norma constitucional é válida e se tem utilidade. Se tem, deve ser objeto de regulamentação mediante lei específica, que trate com exclusividade da matéria. Se pertence ao terreno da fantasia, deve ser excluída por emenda.
Registro, afinal, neste breve e incompleto texto, a inadiável regulamentação do Art. 184, cujo texto ambíguo diz: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis em até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. Ignoro os nomes dos autores da excrecência jurídica. Tem odor de PT e de PSDB. Afinal, a quem caberia avaliar se o imóvel rural cumpre ou não a função social. Quais os parâmetros utilizáveis, de forma justa e equilibrada? Com a palavra a bancada ruralista.
Na cerimônia de posse, o Presidente e o Vice-Presidente da República prestarão compromisso de “manter, defender e cumprir a Constituição.” Como poderão cumprir dispositivos inoperantes por falta de regulamentação? É a incômoda pergunta que Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin deverão responder.
– Almir Pazzianotto Pinto é advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.