Nas incontáveis conversas que tive com amigos franceses a respeito das eleições, surgiu sempre, inevitavelmente, o comentário sobre o Brasil atual, “um país dividido, com metade da população de esquerda e a outra metade de extrema-direita”. Há aí um enorme engano, uma imensa ignorância sobre o que é nosso país, como vivemos nos últimos quatro anos, sobre o peso do uso da máquina do Estado neste pleito. Não foi, sabemos, uma eleição normal, tivemos de lutar como leões para tentar equilibrar as forças políticas em presença e convencer os indecisos de que o que estava em jogo não era uma batalha entre esquerda e direita, e sim democracia contra ditadura. Ou para utilizar a mensagem tão batida, civilização contra barbárie.
Na primeira sessão após o resultado, minha analista abriu a porta da sala com um sorriso e um comentário: – Então, a Terra voltou a ser redonda !
Nossa vitória foi sofrida, a luta, gigantesca. Ao final da contagem, chorei feito criança, não de alegria, mas de alívio. Evitamos por pouco, creio que como todos os do nosso campo, um infarto provavelmente fatal. Nunca, na história brasileira, tivemos uma eleição com tantas tentativas de fraude, aos olhos de todos. Foram empresários pressionando seus funcionários a votar no inominável, foi a diretora-geral de uma indústria têxtil obrigando as trabalhadoras a esconder o celular no sutiã para, uma vez na cabine, fotografar o voto; foi a Polícia Rodoviária Federal, dirigida por um bandido, multiplicando blitz e violando a determinação do TSE, com o único objetivo de impedir os nordestinos de chegarem a tempo às urnas; foi o tresloucado Roberto Jefferson dando sessenta tiros e atirando três granadas contra policiais, tentando assim criar o caos que poderia levar ao adiamento das eleições; foi a gangue de Steve Bannon e seu amiguinho Dudu do hambúrguer instalada na Avenida Paulista, dirigindo a orquestra das fake news. Enfim, poderíamos ficar horas, dias inteiros, a desfilar as tentativas de fraude eleitoral. Por isso, os números finais não retratam o que foi a vitória de Lula, a nossa vitória, a de todos os democratas. Ela foi imensa, visto a situação foi um verdadeiro milagre, proporcional às lágrimas que derramamos. Foi um desafogo, um refrigério, a explosão de tantas humilhações contidas. A alegria da libertação misturou-se ao saboroso gosto da vitória sobre o inferno dantesco.
Agora, em meio às manifestações bolsonaristas, que lembram tanto o nazismo nascente na Alemanha de 1931/32, em pleno 84° aniversário da Noite dos Cristais, começa a transição, com a sensação de que a tarefa será pra lá de árdua.
Bastou Lula assinalar que a prioridade das prioridades seria alimentar dezenas de milhões de brasileiros famintos (muitos dos quais nem dinheiro para o osso da sopa tem), e eis que o obeso mercado acordou e jogou a Bolsa pra baixo e o dólar para o alto, numa harmonia perfeita com os jornalões que em uníssono gritaram a palavra de ordem: responsabilidade fiscal, mostrando assim que a sobrevivência de 33 milhões de miseráveis pouco importa.
Foram sábias as palavras de Guido Mantega, por quem não morro de amores, à Folha de S. Paulo, afirmando ser necessário dar prioridade máxima aos mais pobres.
“Lula não quer começar o governo com as mãos amarradas. Porque senão, não vai longe. Se não conseguir atender rapidamente os anseios dessa população, o governo vai por água abaixo”.
De mãos dadas com esse ser misterioso chamado mercado, antes mesmo de Lula assumir, a Grande Imprensa já começou a bater no presidente eleito, mostrando assim que não fez a tão necessária autocrítica sobre a sua responsabilidade no golpe e nos anos negros do nazifacismo que se seguiram. Essa mesma imprensa que até hoje reclama uma autocrítica do PT, mas que é incapaz de olhar para o seu próprio umbigo.
Cuidar das pessoas que passam fome é, e será sempre, a primeira coisa a fazer. E se para tanto for preciso ignorar a responsabilidade fiscal, que assim o seja. Lula só não será compreendido por aqueles que desperdiçam 40% dos alimentos que chegam às suas mesas. Dentre estes estão os donos dos jornais e da mídia eletrônica; que há muito abandonaram os que mais precisam, se é que algum dia olharam para eles. Sei do que falo, afinal durante 50 anos trabalhei para eles, os “donos da verdade”.
Claro que será preciso, antes de mais nada, aumentar o salário mínimo e criar o Bolsa Família de 600 reais. O tecido social se esgarçou, quase ao ponto de se romper de vez. Mas o resto não poderá demorar. O próximo governo da frente popular e democrática, essa espécie de geringonça macunaímica, terá o desafio de reconstruir tudo o que a extrema direita destruiu. Não é pouco. Além da recuperação da economia, preocupação de todos, há muito o que fazer.
Visto o contexto de violência da sociedade brasileira e o retrocesso de valores humanos, há urgência em desenvolver uma campanha nacional de educação para a paz social. É preciso pacificar o país, resgatar o respeito às diferenças, ressuscitar Paulo Freire. Este será um processo de longo prazo, em que haverá inúmeros tropeços. Precisamos todos estar preparados para levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Se a meta for clara, estaremos prontos para ajudar na reconstrução da cidadania.
Com um porém: como disse Boulos, pacificação não pode ser esquecimento. Desta vez, não estamos dispostos a perdoar nem muito menos esquecer. Os criminosos terão de pagar por seus crimes, como deve ser num Estado Democrático de Direito. Não é vingança , é Justiça.
Ao prevaricar por abandonar as crianças estupradas e prostituídas da Ilha de Marajó, Damares tem de ser processada e pagar. Carla Zambelli, ao sair na rua armada atrás de um jornalista preto, apontando para ele o revolver enquanto seu amigo atirava em pleno bairro dos Jardins, em São Paulo, ela zombando da determinação do presidente do TSE, precisa ser punida. Não se pode admitir que “pinte um clima” entre um idoso e meninas de 14 anos, refugiadas tratadas como garotas de programa. Os policiais e milicianos que entraram tantas vezes nas comunidades cariocas, atirando a esmo, ferindo e matando menores de idade, têm de responder por seus crimes, mesmo se receberam aplausos do Planalto, de onde vieram as ordens. Jair Messias Bolsonaro tem que responder por genocídio na gestão da pandemia. E os seus filhotes, por rachadinhas e corrupção. Os policiais rodoviários que mataram Genivaldo, transformando uma viatura numa câmara de gás digna de Auschwitz, têm de ser presos. O véio da Havan terá de responder pelo financiamento das manifestações golpistas que paralisaram o país. Os assassinos de Bruno Pereira e Dom Phillips terão de pagar, bem como os mandantes da morte de Marielle Franco. E muito, muitíssimo mais; a lista é infindável. Não há desculpas para esta gentalha.
Se os criminosos, protegidos por Augusto Aras e a gangue do Ministério Público, não pagarem por seus crimes, não haverá pacificação. A sociedade brasileira não aguenta mais varrer para debaixo do tapete, tornou-se alérgica à palavra anistia.
Por isso, logo de início será preciso se atacar às “emendas de relator”, consideradas o maior assalto aos cofres públicos da nossa história, mas que, pelo jeito, já estão sendo negociadas com o Centrão, este prostituto político que se vende ao maior cachê. Se assim for, a geringonça brasileira estará minando seu capital de confiança antes mesmo de 1° de janeiro.
Por falar em cobrança, não podemos minimizar tampouco o espinhoso porém mais que necessário trabalho de despolitização das forças armadas, pois caso contrário estaremos, daqui a 4, 8 ou 12 anos, novamente tentando salvar a democracia.
O trabalho é hercúleo, mas este é o preço a pagar para sermos felizes de novo.