O título é retirado da obra prima de José Ortega Y Gasset, escrita na década de 1930 para anunciar que a humanidade começava a viver sob o império das massas: “As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os trens cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dos médicos famosos, cheias de enfermos. Os espetáculos, desde que não sejam muito extemporâneos, cheios de expectadores. As praias cheias de banhistas. O que antes não era problema, começa a sê-lo quase de contínuo: encontrar lugar” (Ed. Livro Ibero-Americano, RJ, 1959, pág. 56).
Se estivesse vivo, Ortega Y Gasset poderia acrescentar as paradas LGVB, as manifestações pacíficas ou violentas de torcidas organizadas, ou, na outra ponta, as filas nos hospitais, as ondas de refugiados que deixam famílias e casas em busca de liberdade, os moradores de rua e milhões de desempregados à procura de trabalho.
O Brasil convive com a rebelião das massas. A desorganização social, a crise econômica, a falência das instituições, a irresistível pressão exercida pelo aumento da população, ampliou a visibilidade da multidão. Se antes já existia, “passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social”, como escreve Ortega Y Gasset. Hoje, com a facilidade proporcionada pelas redes sociais, politizou-se e se transformou no personagem principal de peça dramática. A massa está simultaneamente em todos os lugares. “A voz das multidões tornou-se preponderante”, escreveu Gustavo Le Bon em Psicologia das Multidões. (Ed. Martins Fontes, SP, 2008, pág. 20).
Na disputa de outubro de 2018 as massas, ou multidões, desempenharam papel primordial. Atropelaram os principais partidos e viraram as costas às velhas oligarquias, para eleger Presidente da República o capitão paraquedista Jair Messias Bolsonaro, representante do nanico Partido Social Liberal (PSL), membro do baixo clero na Câmara dos Deputados. Poucos meses antes corria por fora, considerado “cavalo paraguaio”. A punhalada no dia 6 de setembro, o internou entre a vida e a morte em hospital de Juiz de Fora, afastando-o da campanha para lhe conceder a vitória sobre Fernando Haddad. Tão desconhecido quanto ele era o candidato à vice-presidência, general Hamilton Mourão.
O panorama atual guarda semelhança com a campanha anterior. Lula leva vantagem no Norte-Nordeste. Bolsonaro tem melhor desempenho nos estados e municípios desenvolvidos, com menor concentração de massas. A bipolaridade Lula Bolsonaro parece-me definitiva. Já não vejo tempo para que Ciro Gomes levante voo e ofereça perigo aos dois líderes nas pesquisas. Simone Tebet, com graves dificuldades para unir o MDB e atrair o PSDB, estacionou no patamar de 1% das intenções de votos.
Como em 2018, as eleições tendem a favorecer quem conseguir atrair o apoio das massas. Jair Bolsonaro sofre forte combate das esquerdas. Resta-lhe insistir na capitalização dos votos da direita conservadora, da classe média, do agronegócio, dos empresários, dos militares federais e estaduais, dos eleitores esparsos e indefinidos, apavorados, porém, pela falta de segurança e recrudescimento da corrupção. Seu terreno favorável resulta do temor ao petismo, devastador dos fundos de pensão, das finanças públicas e privadas. Lula é a reação ao Brasil jovem, renovado, que clama por modernização. Estacionou nas décadas de 1970 e 1980, quando foi o aglutinador do movimento operário no ABCD. Não o avisaram de que o século 21 é a ruptura com o século 20, para abrir as portas à nova era na história do desenvolvimento humano.
No terreno das relações do trabalho pouco aprendeu. Não consegue entender o significado da globalização, das novas modalidades de produção e de trabalho. Ignora que o operário da sua época é espécie em extinção, tragado pelo computador e pela robotização. Propõe revogar a reforma trabalhista. Defende a imutabilidade da CLT, a estabilidade absoluta no emprego, a greve em atividades essenciais, nas estatais, no serviço público. Quando o vejo discursar lembro-me das paralisações de 1979 e 1980, e das assembleias no Estádio da Vila Euclides, quando anunciava o apocalipse para empregadores nacionais e multinacionais. Ou da campanha insidiosa contra o presidente Sarney, assolado por milhares de paralisações de cunho político-partidário.
Conseguirão as massas avaliar de forma objetiva as candidaturas? Creio que não. As multidões “acumulam não a inteligência, mas a mediocridade” (Le Bon, pág. 34). “Até aqui – escreveu o sociólogo francês – as civilizações foram criadas e guiadas por uma pequena aristocracia intelectual, nunca pelas multidões. Estas têm poder apenas para destruir. Seu domínio sempre representa uma fase de desordem” (pág. 23).
– Almir Pazzianotto Pinto Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.