A palavra cristianização, segundo os dicionários, significa tornar-se cristão, converter-se ao cristianismo. É lamentável, entretanto, que expressão revestida de sentido nobre também expresse a ideia de traição, de quebra de fidelidade, perfídia, aleivosia, deslealde.
No pior dos sentidos o termo cristianização surgiu nas eleições presidenciais de 1950, quando o brigadeiro Eduardo Gomes, indicado pela União Democrática Nacional (UDN), disputou o Palácio do Catete com Getúlio Vargas, por si mesmo escolhido para representar o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Candidataram-se, também, Cristiano Machado, do Partido Social Democrático (PSD) e João Mangabeira, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Aos 68 anos de idade Getúlio Vargas procurava retomar a presidência da República, por ele ocupada no período conhecido como “era Vargas” (1930-1945). Confinado em São Borja desde 29 de outubro de 1945, após ser deposto pelos militares, o líder trabalhista não pouparia esforços para voltar ao vértice da política nacional. As chances de vitória se acentuaram quando se aliou ao governador de São Paulo, Adhemar de Barros, presidente do Partido Social Progressista (PSP), que indicou, para a vice-presidência, João Café Filho, deputado federal pelo Rio Grande do Norte.
Devo lembrar que, segundo o Art. 81 da Constituição de 1946, presidente e vice-presidente da República eram eleitos simultaneamente, mas com votações pessoais diretas. A eleição conjunta do vice-presidente com o presidente da República foi instituída pela Constituição promulgada em 1967 (Emenda nº 1/1969), sendo a novidade confirmada na Constituição em vigor, cujo Art. 77, § 1º, diz: “A eleição do Presidente da República importará a do Vice-Presidente com ele registrado”.
No desenrolar da campanha de 1950 o PSD se deu conta de que Vargas levava vantagem sobre Eduardo Gomes e Cristiano Machado. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Carteira de Trabalho eram os melhores cabos eleitorais. Oportunista, o partido não vacilou. Como se lê no Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (DHBB), “O refluxo do setor getulista desse partido em relação à candidatura Cristiano Machado e a transferência dos seus votos para Vargas configuraram um processo de esvaziamento eleitoral que ficou conhecido como ‘cristianização’” (Ed. FGV-CPDOC, RJ, 2002, 2ª ed., vol. III, pág.3.381)
Parafraseando Hegel escreveu Marx no livro O 18 Brumário de Luís Napoleão: “os fatos e personagens na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. A traição a Cristiano Machado, em 1950, foi o primeiro ato de tragédia consumada em agosto de 1954, quando, sob pressão dos militares, Getúlio encontrou no suicídio a única maneira de não se submeter à humilhação de novo golpe militar. Disparou um tiro no coração para não ser deposto, preso e condenado.
O MDB de hoje não guarda semelhança com o partido cuja atuação foi decisiva para a queda da ditadura em 1985. Sob o comando de Ulysses Guimarães arrostou a maioria governista do colégio eleitoral, elegendo Tancredo Neves presidente da República. Hoje, quem melhor projeta a imagem do fisiológico MDB é o senador alagoano Renan Calheiros.
O lançamento da candidatura da senadora Simone Tebet é a chance daquele que foi o maior partido nacional se redimir e voltar ao primeiro plano da vida política. Trair o MDB, quando tem chance de purgar os erros anteriores, cristianizando a senadora pelo Estado do Mato Grosso do Sul para apoiar a candidatura de Lula, atende aos interesses fisiológicos de integrantes da cúpula
Simone Tebet concorrerá lutando com todas as forças para vencer. Poderá ser derrotada, pois é o risco que se corre em eleições livres e democráticas. Há, entretanto, algo pior do que a derrota, disse Winston Churchill, em um dos mais belos discursos proferidos na Segunda Grande Guerra, quando a Inglaterra, sozinha e desarmada, enfrentava o exército, a marinha e a força aérea da Alemanha nazista. Pior do que a derrota é a desonra, disse o Primeiro Ministro inglês.
O ex-presidente Michel Temer é o líder do MDB. Não deve se associar à farsa da cristianização. Em nome da defesa da honra e da dignidade do partido, cabe-lhe sustentar a candidatura de Simone Tebet, para a vitória ou para a derrota. Pior do que a derrota, repito, será a desonra.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho