Influência das igrejas põe em xeque a opção constitucional por país laico

O fechamento dos cassinos é um exemplo. Há 75 anos nenhum político consegue reverter por temer a reação de padres e pastores, enquanto a jogatina corre solta país afora. Arthur Lira quer mudar essa toada a toque de caixa.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, está cada vez mais empenhado em aprovar, ainda este ano, projeto que libera a exploração dos chamados jogos de azar no Brasil. Há cerca de duas semanas, ele se reuniu com deputados evangélicos em um jantar para tentar um acordo em torno de uma proposta que está sendo construída por um grupo de trabalho coordenada pelo deputado baiano João Bacelar. Criado por Lira, esse grupo analisa as diversas que há tempos tramitam na Câmara em busca de um texto que seja aceito pela maioria dos parlamentares.

Presidente da Câmara, deputado Arthur Lira – Foto Orlando Brito

Até agora as investidas de Arthur Lira não resultaram em um acordo com a bancada da bíblia, que, em sua maioria, segue resistindo à liberação do jogo. A turma liderada pela Igreja Universal, que tem o Republicanos como braço político, há algum tempo aderiu a legalizar a jogatina, que corre solta à revelia de proibição legal.

 

Em meio a essa queda de braço, que envolve outros ramos religiosos, o presidente da Câmara aposta que conseguirá votar um projeto que legaliza bingos e cassinos no país a toque de caixa, antes mesmo do recesso parlamentar, marcado para o próximo dia 22, um presente de Natal para quem aposta nos negócios para tirar a sorte grande no Brasil.

Trata-se de uma questão que tem vários ângulos. O que há décadas serve de justificativa para a proibição é o religioso. O que se alega nos mais variados púlpitos é que esse tipo de aposta vicia e leva a perdição a muitos lares. Pura hipocrisia. Em suas múltiplas modalidades, das apostas on line à  fezinha nas esquinas das principais cidades brasileiras, tá tudo liberado.

Por outro ângulo, chama a atenção o empenho de políticos que não dão ponto sem nó. Evidente que, com tanto dinheiro envolvido, Arthur Lira, hoje caixa geral da República, puxe o bloco. Essa, aliás, é uma pauta antiga de políticos que recebiam estímulos dos mais variados setores interessados na liberação do jogo para alavancar seus negócios.

O Ministério Público é outro vértice da resistência ao liberou geral da jogatina. Seu foco sempre foi a lavagem de dinheiro. Depois dos assaltos aos cofres das empresas estatais descobertos no Mensalão e na Lava Jato, com esquemas internacionais de lavagem de dinheiro, a alegação dos procuradores perdeu consistência.

Para além da questão religiosa, algo muito mais importante merece atenção da sociedade e dos órgãos de controle do estado: como se dará a legalização. O processo deve ser transparente e não um jogo de cartas marcadas, onde apenas uns poucos serão contemplados. É preciso ficar atento aos mecanismos de controle que serão adotados para garantir o que o dinheiro dos cassinos possa ser facilmente rastreado, evitando a lavagem de dinheiro. Essa sim, uma preocupação real.

O senador Flávio Bolsonaro e o pai Jair – Foto Orlando Brito

A sociedade precisa cuidar para que esse assunto não se torne um novo orçamento secreto. Também não podemos permitir que lobistas manipulem os debates. Em setembro, durante a CPI da Pandemia, senadores descobriram que Danilo Berndt Trento, diretor institucional da Precisa Medicamentos, viajou para Las Vegas, em janeiro do ano passado, acompanhado pelo senador Flávio Bolsonaro, para tratar da questão dos jogos. Na época o Senado tinha intenção de colocar em pauta o projeto do ministro Chefe da Casa Civil do governo, Ciro Nogueira, que libera os cassinos no Brasil. Depois da descoberta da CPI, a proposta voltou para gaveta.

O projeto é importante. Vai gerar empregos e aumentar o caixa do Tesouro Nacional. O Congresso estima que serão criadas mais de 700 mil vagas e a Receita Federal avalia que o governo terá um incremento anual de mais de R$ 20 bilhões em seus cofres, somente com o recolhimento de impostos. Mas isso precisa ser fiscalizado pela sociedade e pelos órgãos de controle do estado.

Mas o principal ponto em torno dessa questão é que a discussão deve ser feita sem que o viés religioso seja o foco central. Afinal, a Constituição Federal de 1988 garante a laicidade do Estado e as decisões dos poderes devem se pautar pelas questões políticas e legais e não religiosas.

Michelle Bolsonaro, a primeira-dama do Brasil, comemora aos gritos e pulos a escolha de Mendonça para o STF

Tema bastante pertinente, aliás, depois da polemica envolvendo a aprovação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal. A votação do Senado criou um clima de indignação na sociedade pela postura do novo ministro que durante a sabatina disse uma coisa e depois de aprovado falou outra.

O caso de André Mendonça foi escancarado, mas não é nenhuma novidade que dirigentes adotem medidas pensando por convicção religiosa. Em 2003, o então procurador-geral da República Claudio Fonteles, beato de carteirinha, entrou com uma ação no Supremo para impedir que parte de Lei de Biossegurança aprovada pelo Congresso entrasse em vigor simplesmente por não concordava com o texto. A legislação autorizava estudos de células tronco com embriões que seriam descartados.

O fechamento dos cassinos também foi uma decisão de caráter puramente religioso. Liberados por Getúlio Vargas, tornaram-se ilegais por Dutra, três meses após sua posse, por influência da primeira-dama Carmela Dutra – conhecida como D. Santinha (apelido totalmente autoexplicativo).

Posse de Eurico Gaspar Dutra como presidente da República, 1946 – Foto Arquivo Nacional

Ao assinar o decreto lei 9.215/46, proibindo o funcionamento dos chamados “jogos de azar” em todo o território nacional, Dutra justificou sua decisão afirmando que os cassinos são “nocivos à moral e aos bons costumes”.

Supreendentemente, na época o decreto recebeu apoio da imprensa e dos políticos, pautados pelo viés religioso, sem se preocuparem com as consequências para os mais de 40 mil trabalhadores que perderam seus empregos. Em 1946 a população era de pouco mais de 41 milhões de habitantes. Isso significa que um em cada mil brasileiros ficou desempregado. Se forem excluídas dessa conta as crianças e os idosos, esse percentual é ainda maior.

Waldomiro Diniz na CPMI dos Bingos – Foto Orlando Brito

Embora o fechamento dos cassinos tenha se dado por meio de decreto, que poderia facilmente ter sido revogado por outro presidente, a moral religiosa continuou a nortear as decisões dos nossos representantes. Hoje essa revogação tornou-se impossível. Em 2004, o então presidente Lula decidiu proibir de vez os jogos de azar, por meio da edição de Medida Provisória aprovada pelo Congresso, após o escândalo Waldomiro Diniz.

O curioso nessa história é que a mensagem presidencial ao Congresso, redigida antes do escândalo revelado pela revista Época, previa exatamente o contrário. O então todo poderoso José Dirceu, chefe da Casa Civil, ainda atordoado pelo envolvimento de um homem de sua confiança em tretas com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, pagou mico ao entregar ao Parlamento um texto que previa exatamente o contrário.

Passados mais de 75 anos, o Brasil nunca discutiu de forma séria e sem um viés hierático a liberação dos jogos de azar. Assim, muitos cassinos clandestinos, bingos e o jogo do bicho, seguem funcionando ilegalmente nos quatro cantos do país, sem qualquer fiscalização, recolhimento de impostos e, pior, financiando o crime organizado.

É urgente e necessário que deputados e senadores decidam sobre essa matéria de uma vez por todas, de forma transparente. O Brasil está atrasado nesse debate. Dos 193 países-membros das Organizações das Nações Unidas (ONU), apenas 37 proíbem os jogos de azar, a maioria deles é mulçumana, como Indonésia e Arábia Saudita, mas também Cuba e Islândia fazem parte da exceção.

Mas a sociedade precisa ficar de olho. Deixar a discussão por conta dos interesses do presidente da Câmara não me parece uma boa ideia.

 

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