O racismo é uma forma de preconceito. Começo com ele para enunciar algo mais preocupante, o preconceito de todos nós.
Quantos negros frequentam a sua casa? Na intimidade. Liste seus amigos. Conte os brancos e os outros. Digamos que nos últimos dez anos passaram por seu lar (e por outros espaços privados) uns cem amigos, colegas, conhecidos. Exclua pedreiros, jardineiros, piscineiros, eletricistas, negros ou não. Pois são serviçais, por regra. Eles costumam ser pobres e oferecer trabalho, não compartilhar momentos de lazer e vida comum mais ampla com você. No Natal temos a medida do cristianismo possível, o da comiseração exercida na oferta de cestas com bebida e petiscos.
Daqueles cem brancos das variadas casas grandes, faça uma conta primária. Se partilhou seu pão (um bom vinho e aquela comida a la française) com um ou dois negros ou pobres, você tem a medida superficial de seu racismo e preconceito: 99 ou 98% é o que carrega de preconceito de cor ou de segregação social no seu entorno social. O exagero porta alguma verdade. O resto é bandeira política para as diversas senzalas de discriminações muitas além do racismo (nele incluindo o reverso racismo de negros contra brancos), que legitimam a Razão cínica na medida que confunde vítima e algozes. Negros, pobres, homoafetivos, nordestinos, imigrantes, mulheres, o contingente dos diferentes objetos de preconceitos é imenso. Esse racismo e esses preconceitos são visíveis. Fico no racismo.
No caso dos brancos que não são racistas (conscientemente) o racismo está presente, naturalizado por habitus de tribo. Culturalizado sutilmente. Esse racismo é oculto, quase invisível. Um racismo dissimulado em vários níveis e graus.
O racismo é justificado e legitimado na agravante história das discriminações objetivas de cinco séculos nas quais se desdobram sutis discriminações. Somos civilizados mas seletivos. E sofisticados. Frequentamos “lounges”, shows do João Bosco, Arthur Moreira Lima e Chico Buarque, mas não costumamos participar de rodas de samba de raiz, de rap, funk.
Os territórios físicos precedem e reforçam os imaginários racistas, mesmo nos círculos mais ilustrados. Nesse meio os mais abastados podem acender fagulhas de piedade, solidariedade, mas passa despercebido o alcance do dissimulado.
Eu diria, preconceitos fixam-se nas entranhas do simbólico (mais inconsciente). Nunca chamaremos um negro de macaco como a Ku Klux Klan o fazia e grupos de extrema direita de hoje o fazem, surrando-os, assassinando-os. Nunca rebaixaremos os negros como o fazem indivíduos abjetos. Sejam fascistas, nazistas, da classe alta, média ou subalterna. O ódio ao (s) Outro (s) cresce exponencialmente em tempos regressivos. Nós os respeitamos como seres humanos, mas na estrutura social e cultural nossos lugares objetivos impõe não raramente o “discreto” distanciamento de elites diante de uma multidão de indivíduos esmagados abaixo na pirâmide social.
Distanciamento muito maior que racismo é o produzido na estrutura iníqua do capitalismo, e no seu formato neoliberal. Ele é estrutural e engendra um cem número de pré-juízos mais próximos do senso comum em relação a tudo que seja diferente e reivindique reconhecimento.
Gramsci advertia que o folclore popular é pleno em ditados e expressões preconceituosas e racistas Esses legados da heteronômica nos circundam em nossas autonomias na liberdade de ir e vir, do Olodum ao carnaval da Rocinha, do candomblé à Uganda, em turismos “democráticos”. E até nos enlouquecemos com a beleza, requebrado e sedução de mulatas (os) e negras (os), mas ainda dissociamos, nas interações sociais, as aproximações entre a estética no belo afrodescendente na sexualidade, nas artes, de outras estéticas da vida privada, íntima.
Os negros podem ser convidados a entrar nas nossas casas grandes. Podemos ir até as senzalas com eles confraternizar. Podemos emprestar solidariedade sincera nas suas lutas sociais. Mas isso tudo não nos faz seres imunizados ao que nossos cérebros programaram em termos de comportamento tribal primitivo. Tampouco não nos tornam mais capazes de naturalizar a complexidade de um mundo multicultural a nos causa resistências à delimitação partilhada de territórios e aos esforços de vida em Comum numa sociedade, nos tempos de desesperos, ressentimentos, inseguranças.
Reconhecer que somos preconceituosos, racistas, machistas, e que essas e outras diminuições do ser humano ultrapassam classes e etnias sociais e impedem a reinvenção de novas formas de vida solidária, é um bom começo para diálogos interculturais e ressignificações intercontextuais.