– I –
I – Tudo começou com a Pickup Ford Ranger estacionada na garagem do prédio da Zona Oeste de São Paulo. Linda. Vermelha. Quase nova. Apenas 15.000 km rodados.
O carro apareceu no prédio um pouco antes do início da quarentena. Ficava estacionado na vaga destinada ao zelador do condomínio.
Começaria ali o tormento do zelador e de sua família. Eles habitavam o pequeno apartamento do térreo do edifício há mais de 10 anos. Era uma residência decente e destinada exatamente ao zelador dos três prédios que integravam aquele condomínio de classe média alta da Zona Oeste de São Paulo. A família residia ali, modesta mas dignamente, com os quatro filhos do casal dormindo em beliches e se revezando no uso do único banheiro do pequeno apartamento.
Sempre discretos e quase invisíveis, os familiares do zelador pouco eram vistos circulando pela grande área comum dos prédios, salvo nas brincadeiras de esconde-esconde e pega-pega que rolavam entre seu filho caçula e as outras crianças menores do condomínio.
A chegada do carrão vermelho, entretanto, causou uma espécie de “frisson” entre alguns moradores. Foi a gota d’água para que o velho aposentado do 5º andar passasse a espionar e atormentar a vida do funcionário.
O velho acordava cedo, embora não precisasse – como aposentado que era – e ficava circulando pelas áreas comuns do condomínio, observando defeitos, sujeiras e pequenos detalhes relativos aos prédios: aquele ladrilho da piscina que ainda não havia sido trocado, o canteiro de flores malcuidado, a esquadria do apartamento do 12º andar que não estava de acordo com o padrão geral aprovado no regulamento do condomínio.
O morador do 5º andar parecia ser o mais inconformado com a presença do carrão vermelho na garagem. Era demais para ele chegar do supermercado, olhar para a direita e avistar aquele carro. Parecia até que ofuscava os outros. Aliás, ele nem avistava os outros carros dos moradores locais. Só tinha olhos para o vermelho. Estava obcecado. Passava furtivamente ao lado do veículo e tentava espiar o que havia dentro, mas os vidros “fumê” não o deixavam vislumbrar o seu interior, o que aumentava ainda mais a sua irritação.
Foi então que resolveu agir. Levantou-se numa quarta-feira determinado a convencer o síndico a dispensar o antigo empregado do condomínio. Não poderia mais admitir aquele carro vermelho e moderno na vaga de um funcionário do prédio. Não tinha o menor cabimento a enorme família morando ali, “de graça” e ostentando aquele carrão. Além disso, era preciso modernizar a portaria, as relações de trabalho, acompanhando os novos tempos.
O velho agiu com método. Passeava com o cachorro várias vezes ao dia, posicionando-se estrategicamente perto da portaria do condomínio. Ali, fingindo passear com seu pet, puxava conversa com os moradores e indagava sobre os variados problemas do prédio. Tinha o cacoete de limpar repetidamente seus óculos. Enquanto os ajeitava na face, baixava um pouco a cabeça para observar melhor as pessoas que cruzavam o portão. Ali, de sentinela, inoculava pitadas diárias e homeopáticas de veneno em seus vizinhos.
– Ô Fonseca, você não acha que a manutenção desses elevadores está péssima? – perguntava distraidamente ao morador do 2º andar.
Fonseca, boa praça, desavisado, entrou na onda do velho e começou também a enumerar, ainda que de boa-fé, a lista de melhorias que entendia devidas.
E assim o aposentado do 5º andar foi se aproximando dos demais moradores. Puxava conversa com um, com outro, mencionava o valor absurdo da taxa condominial e, na sequência, mencionava o consumo de água, gás e luz da família do zelador. Finalmente, chegava ao ponto principal de sua abordagem:
– Você já reparou no carro do nosso zelador?
Diante do gesto afirmativo de seu interlocutor, ele prosseguia:
– Ele com esse carrão e a gente pagando esse condomínio absurdo… Há algo muito errado por aqui. Onde já se viu o zelador de um prédio andar por aí com um carrão desses? – comentava, indignado. Foi pago com o nosso dinheiro, com certeza!
Além disso, o morador do 5º andar dirigia-se diariamente ao experiente zelador, sempre com alguma reclamação a fazer.
– Ô Adenilson, você precisa falar com o morador da cobertura. Não é possível. O sujeito pintou a parede interna da varanda com uma cor diferente.
– Mas como o Sr. viu isso? – perguntou o zelador, incrédulo. Olhava para cima e não notava qualquer irregularidade na fachada do apartamento da cobertura.
– Ora, usando o binóculo é possível ver que o vizinho descumpriu o padrão do prédio, sim, e o senhor como zelador, deveria ter visto isso. Outra coisa: a empresa que o sr. contratou para a manutenção dos elevadores não fez um trabalho benfeito. Hoje já deu defeito de novo. Quase fiquei preso lá dentro.
– Bom, eu bem que avisei ao síndico que essa empresa não me tinha sido bem recomendada, mas ele insistiu. Disse que conhecia o dono da empresa e que ele faria o serviço por um precinho bacana – explicou pacientemente o zelador.
Desapontado, o velho virou-se e entrou no saguão, apertando repetidamente o botão do elevador.
II – Adenilson estava cansado. Dormira apenas 4 horas naquela noite. Passara a madrugada inteira fazendo viagens. Fizera o percurso ida e volta de Campinas/Viracopos a São Paulo três vezes na madrugada anterior, carregando malas para turistas que iam viajar para o exterior. Era um serviço bastante cansativo mas o dinheiro compensava. Arrumara esse “bico” para ajudar no orçamento doméstico. Fazia as viagens diariamente, após cumprir o expediente normal no condomínio.
Precisava da grana extra para pagar a faculdade de Direito da filha mais velha. Queria proporcionar um futuro melhor para os filhos. Dar melhores oportunidades para eles. Era muito cansativo mas o esforço valeria pena.
Mirna, sua esposa, trabalhava como empregada doméstica em uma residência familiar e cuidava das filhas dos patrões. O orçamento era apertado. O salário como empregada doméstica, junto com a remuneração de zelador garantiam a sobrevivência da família, principalmente porque não tinham gastos com aluguel, água, luz e gás. Mas a faculdade da filha era impossível de pagar.
Por isso fizeram aquele esforço. Economizaram anos para comprar aquele carro bom, espaçoso e grande, que garantiria as viagens em segurança com os quatro filhos e – mais importante – possibilitaria o ganho extra com o “bico” dos transportes.
Mirna, contudo, ficava agoniada. Percebia que o marido estava esgotado. Pouco dormia. As viagens diárias o consumiam muito e, quando retornava, tinha poucas horas para repousar até o início do expediente como zelador. Mas a hora era essa, dizia Adenilson. “Sou jovem e tenho saúde. Preciso investir nos meus filhos”.
Adenilson gostava de ser zelador. Muitos moradores eram gentis e educados. Sempre o chamavam para fazer um ou outro serviço em seus apartamentos, e davam boas gorjetas.
Mas sempre havia um ou outro morador que destoava. Achava que o zelador tinha obrigação de resolver todos os problemas de encanamento de seu apartamento sem qualquer remuneração, como se aquilo estivesse incluído nas obrigações de seu contrato de trabalho. Paciência. Todo serviço tinha seus problemas, pensava.
Adenilson notava, entretanto, que o velho aposentado do 5º andar estava particularmente mais irritado e agressivo ultimamente. Talvez fosse por causa da quarentena, da pandemia. Tentava compreender. Não estava fácil para ninguém ficar sem sair de casa. Fora isso, pensava, o velho até que tentava ser simpático. Sempre que via Adenilson saindo da garagem do prédio dizia:
– Carrão bonito, hein, Adenilson!
III – Sessenta dias se passaram. Após a reunião do condomínio, Adenilson recebeu, atônito, o aviso de sua dispensa. O síndico explicou que não era nenhum problema com ele, mas de contenção de despesas. E comunicou-lhe que ele e sua família teriam 40 dias para deixar o apartamento onde moravam.
Adenilson não esperava por essa. Ficar desempregado, no meio da pandemia. Passou aquela noite em claro, passando e repassando suas tarefas, pensando no que poderia ter feito de errado para ser dispensado daquela forma, sem nenhuma explicação convincente. Não conseguia entender. Logo agora, que as viagens estavam paradas por causa da pandemia e ele nem teria mais o seu “bico” garantido. Chorou de desespero.
Adenilson e sua família deixaram a residência antes do prazo estipulado pelo síndico. Foram morar de favor na casa de um parente que os acolheu. Ficariam ali por um tempo, até que Adenilson conseguisse novo emprego. Seu único plano era pegar o saldo do FGTS e juntar com o valor da venda do carro para conseguirem comprar alguma casa modesta para a família morar. A filha mais velha teve que abandonar a faculdade.
No condomínio, tudo voltara ao normal. Um novo zelador foi contratado através de uma empresa terceirizada, por um salário bem inferior ao de Adenilson e sem a possibilidade de utilizar a residência do térreo. Os demais funcionários continuavam a deslizar silenciosamente pelos prédios, invisibilizados, sempre com o uniforme cáqui fornecido pela empresa terceirizada, a mesma que contratou o novo zelador.
O valor da taxa condominial não foi alterado, contudo. Alguns moradores perceberam que os gastos com água, luz e gás da residência do zelador, quando rateado entre os 72 apartamentos, equivaleria a um valor menor que R$ 15,00 por unidade. Logo, o valor do condomínio não poderia ser reduzido. Paciência. As relações de trabalho foram “modernizadas”. Era preciso. Todos diziam que era inevitável.
Mas o certo é que agora, quando o novo zelador chegava para trabalhar, pela manhã, e entrava na garagem do prédio com sua Brasília amarela 79, que tinha a porta lateral direita lascada, o morador do 5º andar sorria internamente. Satisfeito, girava a chave de ignição de seu Meriva 2007 com o adesivo da bandeira do Brasil na parte frontal e saía da garagem confiante em direção ao supermercado. Tudo voltava ao normal. Cada coisa em seu lugar. Como sempre foi. Como deve ser.
Fim
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* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região