Como tantos outros que se deslumbraram com o poder em todos os tempos e mundo afora, Bolsonaro chegou ao Palácio do Alvorada com planos de morar lá por mais tempo do que seu mandato de quatro anos. A aposta na reeleição, regra dentro das quatro linhas da Constituição, começou a subir no telhado na mesma velocidade em que foram sendo desvendados escândalos familiares. Esticar a permanência no poder passou de sonho a ilusão e se transformou em obsessão pelo temor de pagar pelos próprios erros, que não são poucos e alguns da maior relevância.
O estrago é grande, até mesmo se não computar o custo do boicote e da omissão criminosos ao combate da maior pandemia da nossa história. Pior: Nada aprenderam com a nossa tragédia em 2020. Parece piada de mau gosto, mas Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes acreditaram que o vírus respeitaria a mudança de página no nosso convencionado calendário: abriram mão do auxílio emergencial que, mesmo com defeitos e fraudes, deu um mínimo de respiro aos mais pobres. Quando deu ruim, passaram a bater cabeça.
E o país seguiu à deriva. Foi um tranco na economia e nos que acreditaram na volta do crescimento em V até recentemente propagandeado por Paulo Guedes. Na vida real das pessoas os preços da comida, das contas de luz, do gás, da gasolina, além de dispararem os índices de inflação, ficaram salgados além da medida. O desemprego continua praticamente igual, a fome e a absurda miséria nas ruas nem mais parecem sensibilizar.
Os inquilinos dos poderes em Brasília vivem em outra realidade. O Centrão e seus similares mantêm o jogo de sempre, faturar o máximo possível antes que o barco afunde, sem eles dentro. Alguns ministros do STF, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ajudam a segurar o leme para que a embarcação não saia da rota. Mesmo assim, Jair Bolsonaro parece viver em um mundo à parte. Dedicou-se nos últimos meses a uma pregação golpista em um périplo pelo país. Mais que o desejo de se perpetuar no poder, o que mais alimentou seus rompantes no cercadinho do Alvorada e Brasil afora é o desespero para livrar a si, a seu clã, amigos e parceiros alvos do avanços das investigações em várias frentes.
Foi nessa toada que ele ultrapassou o sinal vermelho nas manifestações de 7 de setembro. Não conseguiu motins e nem manifestações gigantescas. Sentiu que o tamanho real de suas forças é bem menor que a ilusão. Ficou isolado. Teve que recuar. Pediu arrego em carta redigida pelo ex-presidente Michel Temer, atribuída a um acordão com setores do STF e o comando do parlamento, em que seu ganho seria um alívio nas apurações sobre malfeitos de seu clã em escândalos de corrupção e na articulação de atos antidemocráticos. Sua conversa com Alexandre de Moraes, mesmo que cheia de dedos de ambos os lados, foi o seu pretexto pra baixar a bola. Ainda não se sabe o que ouviu de Temer ou de Alexandre Moraes. O fato é que se acreditou só realça seu desespero. Mas pode apenas ser, como apregoam alguns de seus devotos, que apenas tenha tentado ganhar tempo depois do fiasco do tal golpe do 7 de Setembro.
Em vez de afrouxar, o cerco a Bolsonaro fechou nos últimos dias. Na terça-feira, as decisões do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e da ministra do STF Rosa Weber de sepultar a Medida Provisória que liberou as fake news eram previsíveis. Foi apenas mais um factoide de Bolsonaro para agradar seus devotos. Mas há fatos novos. O Tribunal Superior Eleitoral resolver investigar se houve propaganda eleitoral antecipada e abuso de poder nos atos bolsonaristas de 7 de Setembro. E mais: se houve pagamento de transporte e diárias para os manifestantes. Isso se soma a outra investigação do STF sobre a organização, mobilização e financiamento dessas mesmas manifestações, que já levaram o ex-deputado Roberto Jefferson à cadeia e o notório Zé Trovão a fugir para o México.
Surpreendeu também as novas cartadas da CPI da Pandemia. Primeiro pelo consubstanciado parecer de juristas, elencando sete supostos crimes de Bolsonaro, alguns na alçada da justiça comum, outros de responsabilidade, que devem ser julgados pelo Congresso Nacional. “Há crime de responsabilidade e a Presidência se transformou em cúmplice do vírus”, sintetizou o ex-ministro da Justiça Miguel Realle Júnior, coordenador do grupo de juristas.
Mas o que pode ser uma nova dor de cabeça para Bolsonaro são as revelações sobre a desenvoltura que sua ex-mulher Ana Cristina Valle, mãe de Jair Renan Bolsonaro ( o 004), circula entre picaretas em Brasília envolvidos em golpes milionários de empresas, inclusive com vacinas, no Ministério da Saúde. Nessa quarta-feira (15), depois do confuso e desastrado depoimento à CPI pelo lobista Marconny Albernaz de Faria, apontado como tendo vínculos com ela e com Jair Renan, a CPI convocou Ana Cristina para depor na comissão.
O curioso é que Ana Cristina chegou chegando em Brasília, virando logo figura cortejada por traquejados lobistas, dispostos a explorar seu prestígio de mãe de um dos filhos do presidente. Mas ela mudou de status desde que, no início de setembro, Marcelo Luiz Nogueira, ex-assessor dela e de Flávio Bolsonaro, deu uma explosiva entrevista ao portal Metrópoles, em que faz um passo a passo do histórico das rachadinhas nos gabinetes do clã Bolsonaro. De acordo com sua versão, quem primeiro controlou todo o esquema foi justamente Ana Cristina. Até se separar de Jair Bolsonaro, é ela quem dava as cartas. A partir dessa separação, segundo Marcelo Luiz, Flávio Bolsonaro e Carlos Bolsonaro assumiram o comando do esquema, que passou a ser operado por Fabrício Queiroz. E deu no que deu.
Ana Cristina parece um fio solto em dois escândalos — as rachadinhas e as tentativas de falcatruas durante a pandemia — que em algum momento podem dar curto circuito.
A conferir.